Depois de uma presença de
séculos na região e do impulso dado pelo Estado Novo à chamada Faina Maior,
está por fazer a história desses homens que foram deixados para trás em St.
John’s, noutros portos da América do Norte e na Gronelândia. Dionísio Esteves,
de Vila Praia de Âncora, Caminha, vai ser o “rosto” deles, graças a um filme
que nos permite perceber onde foi enterrado há precisamente 48 anos.
A imagem
é de 1966, de 6 de Maio. Num cemitério semiapagado pelo nevoeiro, homens
apertados nos seus fatos e gravatas, de ar abatido, escutam orações num inglês
que mal entendem, mas cuja cadência reconhecem. Alguns balbuciam as suas preces
em português, como se Dionísio Esteves, o que ali está a ser enterrado, melhor
fosse encomendado aos céus na sua língua materna. São de pescadores todos estes
rostos captados num documentário, 1966 — O Navio Branco, que Hector
Lemieux filmou para o National Film Board do Canadá. Nesse ano, o capitão
Vitorino Ramalheira e a tripulação do Santa Maria Manuela recuperaram
dois homens perdidos no nevoeiro. Mas viram morrer, num acidente de trabalho, o
jovem de Vila Praia de Âncora, Caminha.
Dionísio
entrara como “verde” no Santa Maria Manuela em 1960. Segundo a
lei, ao completar a sua sétima viagem consecutiva na Pesca do Bacalhau,
livrava-se do serviço militar obrigatório e foi com esse espírito que, aos 26
anos, partiu de Lisboa, com a bênção de Salazar e da Igreja, naquela Primavera,
num dos famosos veleiros do que ainda restava da chamada Frota Branca portuguesa.
Assim baptizada desde que, para assinalar a neutralidade do país, se teve de
pintar de branco os navios, na II Guerra. Dionísio ainda tentou levar o irmão
Fernando com ele. Mas era duríssima a vida nos dóris, esses botes de um homem
só, em que os portugueses da pesca à linha trabalhavam em troca de um salário
dependente de quanto pescassem ao longo de seis meses, e o rapaz de 18 anos, já
homem feito e com bastante experiência de mar, mas na costa portuguesa,
achava-se novo para aquilo.
Manuel Agonia Cancuja Marques,
pescador das Caxinas, trabalhou no navio Santa Maria Manuela em 1960.
Vitorino
Ramalheira mantém viva, aos 85 anos, a memória do temporal que apanharam, entre
os Açores e o Canadá, no final de Abril desse ano. Dionísio ficou gravemente
ferido quando, arrastado pelo mar no convés durante uma manobra, terá embatido
num ferro. “Foi na esquina do tanque do óleo do bacalhau”, precisa Manuel
Agonia Cancuja Marques, o Nia Cancuja, um dos pescadores de Caxinas e Poça da
Barca, Vila do Conde, que trabalhavam naquele mesmo navio. O Gil Eannes estava
ainda em Lisboa. Ramalheira ponderou voltar para trás, e deixar o homem nas
Ilhas, mas desconfiou da qualidade dos cuidados que ali lhe poderiam ser
prestados, explica à Revista 2, justificando, assim, a opção de
seguir viagem para a Terra Nova. “E na verdade também nem tínhamos noção da
gravidade dos ferimentos, que eram internos”, acrescenta o capitão.
“O navio
andava pouco. Ainda não tinha motor auxiliar, demoramos uns três dias a chegar
a St. John’s”, contabiliza Nia Cancuja. Acompanhado por um enfermeiro, Dionísio
agoniava em silêncio, “no beliche, sem dar uma fala a ninguém” — diz o
companheiro, já comovido pela memória — até acabar por morrer na véspera da
chegada a terra, a 5 de Maio. “O que nos botava em choque era ter de passar por
ele, e ele ali, morto.” No navio, estes tensos momentos de viagem foram
poeticamente captados por Rex Tasker, que escreveu e produziu o documentário de
Lemieux. “À noite chega o momento da chora” — the soup of sorrow,
traduz livre e apropriadamente para inglês o narrador, voz a quebrar um plano
silencioso na mesa do rancho. “Diz-se que quem a come voltará aos Bancos [da
Terra Nova]. Dionísio não a comerá. Recém-casado, esmagado por uma onda, o seu
corpo segue num caixão.”
Nesse dia
5 de Maio, o irmão de Dionísio, Fernando Esteves, acabara de chegar ao portinho
de Âncora quando o mandaram de imediato para casa, no bairro dos pescadores,
ali a poucos metros, aliviando-o do trabalho de descarga do peixe. Desconfiou.
“Quando cheguei, já estava tudo aos gritos”, revive. Alguém os tinha vindo
avisar da capitania, para onde eram enviados os telegramas. Cristina, a mulher
de Dionísio, enviuvava em seis meses, já grávida de uma filha, Cândida, que
nunca chegaria a conhecer o pai. França, para onde emigraram mais tarde,
deixou-as mais longe daquela desgraça que vem nas letras pequenas de qualquer
contrato de casamento com um pescador, numa cláusula dependente dos humores do
mar. O cemitério católico de São João da Terra Nova, onde o tripulante do Santa
Maria Manuela foi enterrado, está cheio destas histórias, várias delas
portuguesas.
Direito a uma campa
Presença constante nos Grandes Bancos há vários séculos, muitos portugueses foram sendo enterrados na Terra Nova, principalmente em St. Jonh’s, e em outros portos da costa canadiana e da Gronelândia, como acontece aliás com marinheiros das muitas nações que frequentavam, em meados do século XX, aqueles mares. Em Mount Carmel, nos arrabaldes da capital provincial e cidade-abrigo da frota portuguesa, uma placa assinala por exemplo a vala comum de 11 dos 15 fogueiros lusos do SS Florizel, um ferry a vapor que se afundou a 24 de Fevereiro de 1918, quando iniciava mais uma ligação a Nova Iorque. Morreram 93 pessoas. Outros portugueses, muitos deles pescadores de bacalhau, foram sepultados no mesmo local, em número indeterminado, mas o passar dos anos, as intempéries e o abandono deixaram sem identificação as sepulturas, adornadas normalmente com uma frágil cruz em madeira.
“Os
cemitérios deles não são como os nossos. Aquilo é um campo”, descreve Fernando
Esteves. Mas ainda assim, Dionísio e os que por lá foram enterrados ainda
tiveram direito a uma campa. Outros foram levados pelo mar: que os engolia à
socapa, ao abrigo da névoa que se abatia repentina sobre os dóris, ou que os
arrastava borda fora dos lugres, como aconteceu no final da década de 50 com
Armando Afonso do Águas Santas, outro pescador de Âncora, e um dos vários
mortos na Faina Maior a quem o dramaturgo Bernardo Santareno dedicou o seu
livro de crónicas marítimas, Nos Mares do Fim do Mundo. Escrita
quando o autor viajou como médico da frota bacalhoeira, em 1957 e 1958, a obra,
que foge ao registo épico das epopeias marítimas, concentra-se nos episódios
quotidianos dos que viviam a bordo em condições absolutamente precárias, no
limite do “aceno da morte” e à mercê, muitas vezes, do seu “beijo
gelado”.
Vitorino
Ramalheira, agora com 85 anos, foi o capitão do Santa Maria Manuela
Durante o
Estado Novo, período em que a pesca do bacalhau foi submetida a uma organização
corporativa que tudo controlava, sob a omnipresença de Henrique Tenreiro, um
delegado-geral das Pescas com mais poderes do que os ministros do sector com
quem conviveu, os pescadores, na verdade, contavam pouco. Percebeu-se isso logo
em 1937. Nesse ano, milhares participaram numa greve em que contestavam as
condições impostas pelo regime — por via do recém-criado Grémio dos Armadores
de Navios da Pesca do Bacalhau — que os obrigava a se inscreverem no mesmo
navio da campanha anterior, o que acabava com a concorrência, entre armadores,
pelos melhores pescadores e nivelava os salários para valores tabelados. A
paralisação durou semanas, mas os homens acabaram mobilizados à força, após
intervenção policial em várias comunidades. Alguns saíram diretamente da prisão
para os navios, conta o investigador Álvaro Garrido em O Estado Novo e
a Campanha do Bacalhau.
Os navios
eram, assim, uma extensão do país. Seguindo à boleia das palavras de Bernardo
Santareno, nas viagens de seis meses da pesca à linha, os capitães exerciam uma
disciplina férrea para conseguirem controlar os humores de dezenas de homens
rudes, quase todos de proveniência humilde e com baixas qualificações, capazes
de gestos extremos de solidariedade e, ao mesmo tempo, prontos para se pegarem
por qualquer insignificância. Estes ansiavam por regressar a casa com o melhor
salário possível, o que dependia dos conhecimentos de quem os comandava e teria
de os levar aos melhores pesqueiros e, aí chegados, da sua sagacidade e
destreza no manejo das linhas de múltiplos anzóis.
Ficha de
Dionísio Esteves no Grémio dos Armadores de Navios da Pesca do Bacalhau, que
morreu há precisamente 48 anos
O objetivo
era encher o porão com bacalhau antes de o Inverno se insinuar, gelando o
próprio mar, no caso da Gronelândia. Submetidos a jornadas de trabalho que
podiam, por vezes, passar as 20 horas, que o descanso só chegava depois de
escalado e salgado o peixe, os pescadores acordavam às 4h, com uma oração, para
se lançarem de novo ao mar pouco depois, naquelas “cascas de nozes” que
tripulavam sozinhos. Os próprios assumem que nem sempre tinham cuidado. Muitos
afastavam-se demais, arriscavam por vezes demais.
“Como
capitão, a minha maior preocupação era não perder nenhum homem. Tentava
mantê-los por perto, que o tempo às vezes mudava rapidamente. Mas eles iam,
como se nada fosse, contentes por poderem pescar. Eles eram uns heróis. Quando
era novo, também tinha aquela adrenalina e fazíamos as coisas naturalmente, mas
agora, passados estes anos, digo-o: eles é que eram os heróis”, repete Vitorino
Ramalheira, que passou metade da sua vida profissional à procura do bacalhau e
que naquele ano de 66, como testemunhou Lemieux, chegou a temer pela vida de
outros dois homens, que se perderam no nevoeiro.
Perante
estes riscos, não espanta que, até meados do século XX, em várias comunidades
do litoral, as mulheres destes homens tivessem por hábito vestir-se de preto
quando eles partiam, e cobrir com panos todo o mobiliário do lar, dormindo, com
uma enxerga, no chão. Era como se toda a casa se enlutasse, solidária com as
provações deles, por seis meses. Mais do que um mau pressentimento, era uma
espera sofrida, por um regresso que nem sempre aconteceu.
Quando as más notícias chegam a casa
Apesar de haver documentação de várias instituições envolvidas neste “desígnio nacional” que era o abastecimento do país com um dos seus alimentos favoritos e de melhor conservação, não se conhece com exatidão o número de baixas na frota portuguesa da pesca do bacalhau durante o Estado Novo. Álvaro Garrido, que é também programador do Museu Marítimo de Ílhavo (MMI), afirma que, da consulta de documentação do Grémio, se contam, em vários anos, três a cinco mortos por campanha. Mas explica que o nível de sinistralidade mortal até tem sido maior nos arrastões. Em todo o caso, o facto é que, se se conhecem bem os casos excecionais, como o afundamento do Maria da Glória, por um submarino, na II Guerra, que matou 36 homens, a grande maioria deles da Fuzeta (Olhão), até hoje ninguém soube dizer quantos, quem eram e de onde partiram esses homens que ficaram nesses mares do Fim do Mundo até ao ocaso da pesca à linha, que coincidiu, em 1974, com o 25 de Abril.
A
revolução pôs os homens em alvoroço. Depois de uma greve em que exigiam que o
salário passasse a ser fixo e não dependente do que pescassem, nesse ano, dois
dos três últimos navios com dóris, o Ilhavense e o São Jorge, foram ao fundo ao
largo da Terra Nova. Muitos dos velhos navios à vela tinham sido abatidos
assim, após incêndios alegadamente provocados a mando dos armadores, em que
todos, como aconteceu nestes casos, saíam ilesos. E quis a ironia da história
que o último exemplar deste tipo de pesca — que no Estado Novo se manteve em
paralelo com tecnologias mais modernas e predatórias como o arrasto — se
chamasse Novos Mares. Símbolo do fim de uma era, este atravessou o
estreito de St. John’s a 24 de Julho de 1974, a caminho de Aveiro, onde foi
adaptado para a pesca com redes. Nesse ano, as imagens de dezenas de homens
espalhados pelo mar, cada um no seu bote, passou a ser uma memória. Ao mesmo
tempo vibrante e triste, pela lembrança dos que por lá ficaram.
Só na
terra de Agonia Cancuja, as Caxinas, ainda hoje demasiadas vezes notícia pelos
seus náufragos, contam-se em mais de uma dezena os nomes que a Revista 2 foi
descobrindo, numa curta pesquisa, apenas em conversa com alguns pescadores.
Várias famílias têm um antepassado que não regressou vivo de uma atividade que,
muito dura, era ainda assim bem mais rentável do que a pesca local, feita então
com barquinhos pouco maiores do que os dóris usados nos Grandes Bancos. Lugar
de recrutamento de cerca de mil bacalhoeiros, esta zona, com a vizinha Póvoa de
Varzim, foi uma fonte importante de mão-de-obra, mas foi apenas uma das muitas
comunidades piscatórias de norte a sul e das ilhas que, ao longo de quatro
décadas, entregaram cerca de 20 mil dos seus àquela vida.
A cada
casa, as más notícias podiam chegar, choque difícil de imaginar, com o navio.
Foi isso, segundo Santareno, que aconteceu com a açoriana Rosa Bailão, que
lançara foguetes para dar as boas-vindas ao marido, Jorge, que só depois
percebeu que se perdera no mar. Mas normalmente elas corriam mais depressa, à
velocidade de um telegrama. Em 1965, criança ainda, o caxineiro José Marafona
soube pelas lágrimas da mãe — revê-a de papel na mão, grávida, 12 filhos — que
o pai, José Gomes Marafona, não regressaria. O corpo, admite a família numa
dúvida alimentada pela distância e pelo tempo que entretanto passou, terá sido
sepultado na Gronelândia. Como o do ilhavense Manuel Gonçalves Bilelo, de cuja
sepultura o Museu Marítimo de Ílhavo guarda uma fotografia tirada por um antigo
comandante do Gil Eannes.
A
história destes homens não será muito diferente da de outros que, até esse ano
de 1966, eram levados para um porto próximo. Só depois de Dionísio Esteves, os
corpos dos que morriam “começaram a ser trazidos de volta”, explica Fernando
Esteves, facto confirmado por Vitorino Ramalheira. O Gil Eannes,
que funcionava como navio-hospital mas também como capitania flutuante, “ainda
não estava por perto quando se deu o acidente com o Dionísio. Tive de tomar uma
decisão”, relembra este homem, natural de Ílhavo, descendente de uma linhagem
de marinheiros e filho de outro famoso capitão de navios bacalhoeiros, João
Ramalheira.
O
ilhavense Manuel Bilelo foi sepultado na Gronelândia. DE muitos outros perdeu-se-lhes
o rasto
Um dos
amigos do capitão Vitorino Ramalheira, Francisco Teles Paião, comandava o Rio
Antuã em 1962 quando, a 7 de Setembro, dois ou três dias antes da
viagem de regresso para Portugal, perdeu o seu melhor pescador. Chama-se José
Francisco Marques, Zé da Ferrucha, este caxineiro de 39 anos que viu o seu dóri
carregado afundar sem que alguém lhe desse a mão. Foi no Mar da Barrinha, na
costa oeste da Gronelândia, precisa o irmão Joaquim, 77 anos bem conservados,
que não esconde que a ambição que elevara o Zé da Ferrucha à condição de
“special” do Rio Antuã — atribuído a quem pescasse muito mais
bacalhau do que os outros — pode bem ter sido o que levou à morte. A ele como a
outros, levados ao fundo do mar por uma ganância estimulada pelo sistema de
remuneração variável. “Nós contribuíamos para isso, ao afixar a tabela com a
classificação de cada um, ao longo da viagem”, assume hoje o capitão
Ramalheira.
Naquele
dia, como habitualmente, José Francisco Marques enchera o bote. Afastara-se dos
outros, como muitas vezes fazia, e aparecera depois carregado ao pé do dóri do
irmão, que ainda pescava. Foi seguindo viagem para o navio-mãe, a remos, quando
o tempo virou, trazendo névoa e um vento que levantou a marola da água.
Confiante, o caxineiro despachara a companhia de outro pescador que se
aproximou dele, mais leve de carga. Seguia sozinho, quando, de longe, o irmão
ouviu os gritos, três, cuja origem só percebeu quando, chegando ao Rio
Antuã, viu que só o Zé da Ferrucha não estava ainda a bordo. De pouco
valera a Joaquim aquele “Oxalá não seja do meu lado” que a sua cabeça inventara
minutos antes, ao ouvir o socorro longínquo, no mar. E de pouco valera a José a
sua destreza. Nos mares gélidos da Gronelândia, a morte chega rápida e ele,
sabendo-o, amarrou um pulso ao balão dos seus aparelhos de pesca.
Foi assim
que o encontraram, ao Zé da Ferrucha — bacalhoeiro desde 1938 — naquele ano em
que pela primeira vez, no Rio Antuã, não pescara com o dóri número
13, o do dia da Senhora de Fátima. Os barcos foram nessa viagem sorteados pelo
capitão e calhou-lhe o 42. Anos antes, numa colecção de cromos sobre seres vivos
que fez a delícia da criançada, este era o número do bacalhau, uma estampilha
“marcada”, por ser difícil de encontrar. E ficou tão famosa aquela caderneta
que, deste então, e como recorda o irmão, no jogo do loto, o 42 é cantado como
“O Bacalhau”, nas Caxinas. Mas de nada valeu este aparente golpe de sorte ao
exímio pescador.
José
Francisco Marques deixou mulher e quatro filhos. Longe de casa, o seu corpo
seguiu para o navio-hospital Gil Eannes, que o transportou para o
porto da localidade de Holsteinsborg, actual Sisimiut, na Gronelândia, para ser
enterrado. Este porto com pequeno hospital, de difícil entrada, segundo
Santareno, tinha “fama de perigoso”, por causa de várias pedras que
dificultavam a navegação. Mas foi bastante utilizado pela frota portuguesa.
A memória da Grande Pesca
A perda do pai não demoveu Manuel Marques, então com 17 anos, da vontade de experimentar a pesca do bacalhau. E foi pela mão do tio Joaquim que, na Primavera de 1963, entrou naquele mesmo barco de onde José fora levado num caixão, sete meses antes. O capitão Francisco Teles Paião, que declinou um convite da Revista 2 para um depoimento sobre estes episódios, tê-lo-á recebido a bordo com uma amabilidade estranha ao relacionamento habitual, distante, entre oficiais e pescadores. “Ele era duro, mas tinha bom coração”, descreve o caxineiro, que, pelo Natal, mantém o hábito de contactar aquele homem de Ílhavo, outro descendente de uma linhagem de capitães cujo pai comandava então o Argus, um dos dois barcos — o outro é o Santa Maria Manuela — que Aníbal Paião, dono da Pascoal & Filhos, comprou recentemente, para o recuperar e manter, assim, na esfera da família, a memória da Grande Pesca.
Como
quase todos os bacalhoeiros, Manuel Marques também mantém fresca, como que
conservada em sal, a sua memória daqueles anos. Principalmente do de 1967, em
que um problema grave nos pulmões o obrigou a uma cirurgia em St. John’s e
posterior convalescença no Gil Eannes, onde chegou a estar em
isolamento. Já quase recuperado, soube que o navio-hospital, que então navegava
ao largo da Gronelândia, ia passar por Holsteinsborg, e pediu que o deixassem
ir a terra, para ver a sepultura do pai. Um grupo, que incluía entre outros
Jaime Pontes, outro caxineiro, pescador noAvis, e Manuel Agonia Maio, da
Poça da Barca, e tripulante do Dom Deniz, foi então enviado à
pequena localidade. Jaime recorda bem que lhes deram tinta e madeira, para que,
se fosse necessário, recuperassem as cruzes das sepulturas de portugueses —
cerca de dez, doze, Manuel já não sabe precisar. Nos últimos anos, os filhos
dele contactaram a paróquia de Sisimiut, de onde lhes disseram que as campas já
não estavam identificadas.
Há dois
anos, um canadiano com raízes nas pequenas ilhas francesas de Saint Pierre e
Miquelon, no Sul da Terra Nova, foi contactado a partir de Portugal por um
amigo, Pedro Pinto — antigo capitão de navios bacalhoeiros e actual coordenador
de operações da Agência Europeia de Controlo das Pescas — e pelo comandante da
corveta António Enes, da Marinha. De partida para mais uma acção de
fiscalização nas águas da Organização das Pescas do Atlântico Noroeste (NAFO,
em inglês), pretendiam ambos fazer uma cerimónia militar de homenagem aos
portugueses e Jean-Pierre Andrieux, empresário e estudioso da nossa presença
nesta região, pareceu-lhes o homem certo para a organizar.
A
Andrieux, a parada e a deposição de flores, em Agosto de 2012, soube-lhe a
pouco, mesmo que repetida anualmente, como acontece desde então. Há dezenas de
anos que o canadiano acompanha os portugueses, fruto de uma amizade que nasceu
nos inícios de 1980, à mesa dos oficiais do Vimeiro, que aportara em Saint
Pierre. Foi ali que o empresário, dono de um hotel, e a mulher, Elisabeth,
conheceram um dos seus grandes amigos, Francisco Paião, que comandava então
esse outro navio. Ele é um de vários portugueses, quase todos da região de
Aveiro, que fazem questão de visitar todos os anos, em longas férias que vêm
repetindo há um quarto de século e que os trouxeram a Portugal em Março e Abril
deste ano. Mas desta vez, para além da vontade de rever Paião, Ramalheira e
outros, o casal trouxe na bagagem um propósito maior: o de garantir, este ano
ainda, esperam, uma homenagem perene aos marinheiros de que tanto ouviram
falar.
“A
memória daqueles pescadores tem de ser preservada”, insiste este canadiano de
66 anos que ouviu as histórias da Frota Branca nesses jantares em que provou o
vinho verde e outros sabores que, terminada a moratória de pesca nos Grandes
Bancos, voltaram em 2010 a atravessar o Atlântico com os (agora poucos) navios
bacalhoeiros. No novo hotel que entretanto abriu em St. John’s, há coleções de
peças pertencentes aos serviços de mesa de muitos dos antigos lugres e, na
biblioteca, há uma miniatura à escala do Gazela Primeiro, mítico
veleiro que, em 1969, fez a sua última viagem à pesca do bacalhau. Em sua casa,
para além de bóias do Gil Eannes, guarda umas 40 mil fotografias de
navios, centenas delas documentando a presença lusa nas águas da Terra Nova.
“Isto representou uma mudança também na minha vida e na da minha família.
Portugal passou a fazer parte de nós”, assume este homem que dedicou um dos
volumes da sua obra Acidentes e Naufrágios na Terra Nova e Labrador ao período
entre 1940-1980 e, especialmente, à Frota Branca.
O irmão do Zé da Ferreucha,
Joaquim, que com ele trabalhava quando o dóris afundou
Manuel Marques, filho do Zé da
Ferrucha, pescador que morreu com o seu dóris carregado na costa oesta da
Gronelândia
Conhecido
o homem, percebe-se porque se meteu Andrieux, nos últimos anos, num esforço de
angariação de fundos para construir um monumento aos portugueses enterrados em
St. John’s. Em Outubro, organizou um jantar, com comida e música portuguesa, e
os seus conterrâneos pagaram cem dólares (quase 66 euros) por cabeça para
participar. Apesar de problemas pontuais, de alguma discriminação testemunhada
por vários pescadores noutros tempos, passados estes anos, “é forte e boa a
memória dos portugueses, principalmente do tempo da Frota Branca, nas décadas
de 50 e 60, em que eles chegavam aos milhares à cidade”, nota o empresário. O
ar humilde, as camisas de padrão axadrezado, os jogos de bola com que se
entretinham no cais que os abrigava das tempestades nos Bancos e o ar de museu
vivo daqueles veleiros, linhas de mastros a marcar o horizonte, criaram uma
aura. “Que não foi esquecida”, acrescenta, justificando assim os 7500 dólares
angariados.
A
estátua, cujo desenho ainda está a ser pensado, vai ser construída nos próximos
meses em Portugal e viajará para a Terra Nova como aqueles que vai homenagear:
num navio bacalhoeiro. No cemitério de Mount Carmel, será uma marca perene
junto de sepulturas sem nomes. “É triste não estarem identificados”, lamenta o
empresário que escreveu sobre contrabandistas de álcool durante a lei seca,
sobre as ilhas Francesas onde nasceu, sobre os Grandes Bancos de pesca e que,
no ano passado, publicou The White Fleet — An History of the Portuguese
Handliners. É o seu contributo para a história de uma saga que inspirou
grandes obras como A Campanha do Argus, de Alan Villiers (livro de
1951, que acaba de ter a sua terceira reedição, uma parceria da Cavalo de Ferro
com o MMI), e que apaixonou também o cinema, como se pode ver em Captain
Corageous (1937), filme a partir da obra homónima de Rudyard Kipling
que valeu a Spencer Tracy um Óscar de melhor ator pelo papel de Manuel, um
pescador português.
A atracão
da Sétima Arte pelos veleiros portugueses foi imensa. Villiers filmou (e
fotografou) uma das viagens do mítico Argus, um veleiro construído
no século XIX, e, entre vários outros, George Sluizer gravou em 1967 para a
National Geographic o documentário The Lonely Dorymen, passado nos
navios José Alberto e Vila do Conde. Mas a película de Lemieux, filmada um ano
antes a bordo do Santa Maria Manuela, acabou por ter outro
significado, ao deixar para a posteridade uma imagem do lugar onde foi
enterrado Dionísio Esteves, o que o retirou do anonimato a que o tempo o
votara. Graças ao plano do cemitério, a homenagem aos portugueses vai ter um
rosto, o do jovem bacalhoeiro de Vila Praia de Âncora que morreu há 48 anos.
O pai de
Dionísio também andara nos Grandes Bancos. E Fernando acabou por ir para lá em
1967, num arrastão, escapando aos trabalhos árduos da pesca à linha e, como era
benesse da legislação desde 1927, livrando-se do serviço militar. Escolheu esse
outro mar para fugir ao Ultramar, onde a morte espreitava no mato. Andou por
ali mais do que os sete anos que a lei equivalia à tropa, marcou o corpo com
cicatrizes, perdeu o baço, mas pôde visitar o irmão, uma vez. De outras que
tentou, “a neve no monte”, recorda, impedia-o de perceber onde estaria
enterrado. E depois a vida levou-o para outros mares, os de África, onde correu
o mapa até ao cabo da Boa Esperança, antes de se fixar de novo na pesca
costeira, na terra natal.
O empresário canadiano
Jean-Pierre Andrieux não quer deixar morrer a memória dos portugueses que
andaram na pesca do bacalhau
Reformado,
Fernando Esteves acalenta agora a esperança noutra viagem, que o leve a ver de
novo a sepultura do irmão. Em Março deste ano, Jean-Pierre Andrieux esteve com
ex-bacalhoeiros em Caminha, a convite da câmara local — que assim lhe agradeceu
o gesto em memória de Dionísio — e fez questão de o convidar a participar na
homenagem que está a organizar. O canadiano garante que se arranjará maneira de
custear a deslocação deste homem. Conheceram-se num almoço que terminou com um
bolo, um doce em forma de bacalhau salgado-seco, e no qual não faltou, a abrir,
a chora, uma sopa de bacalhau antes servida no rancho da proa dos navios e hoje
transformada em iguaria gourmet. Se for verdade o que diziam os antigos, ao
comê-la, Fernando talvez tenha garantido o seu bilhete de regresso à Terra
Nova.
Ao meu
bisavô Abel, que em 1910 já andava pela Terra Nova e que para lá levou meia
dúzia de filhos, tendo perdido um deles no mar, nessas viagens. À Cândida, que
não conheço e que nunca conheceu o pai, Dionísio Esteves. Ao meu pai, Abel,
que, como a maioria, felizmente, teve a sorte de ir e voltar.
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