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segunda-feira, 16 de novembro de 2015

A violência em nome de Deus: no Angelus a dor do Papa pelos bárbaros ataques terroristas em Paris

«Desejo reafirmar com vigor que o caminho da violência e do ódio não resolve os problemas e que utilizar o nome de Deus para justificar este caminho é uma blasfémia!». Ainda abalado e entristecido, o Papa Francisco voltou a falar dos «ataques terroristas que ensanguentaram a França, causando numerosas vítimas».
 
No Angelus dominical de 15 de Novembro, recitado com os fiéis que vieram em grande número à praça de São Pedro, a menos de quarenta e oito horas do dramático banho de sangue na capital francesa, o Pontífice quis garantir ao presidente e a todos os cidadãos da República a expressão das suas «fraternas condolências. Estou próximo em particular – disse com voz comovida – dos familiares de quantos perderam a vida e dos feridos». Depois, prosseguiu, evidenciando que «tanta barbárie» deixa chocados e obriga a questionar «como possa o coração do homem projectar e realizar eventos tão horríveis, que abalam o mundo inteiro». Eis a firme condenação de tais actos, que representam um «inqualificável afronto à dignidade da pessoa humana».
 
Sobre o tema interveio também o cardeal secretário de Estado, Pietro Parolin, numa entrevista concedida ao jornal francês «La Croix». Respondendo às perguntas do jornalista Sébastien Maillard, o purpurado fez votos por uma mobilização de todos os protagonistas políticos e religiosos, inclusive muçulmanos, para desenraizar o terrorismo: uma mobilização geral, acrescentou, da França, da Europa e do mundo inteiro, quer de meios de segurança, quer de recursos espirituais, para dar uma resposta positiva ao mal. «Num mundo dilacerado pela violência – frisou o cardeal – este é o momento oportuno para lançar a ofensiva da misericórdia».

terça-feira, 20 de outubro de 2015

As sepulturas esquecidas por Abel Coentrão

Depois de uma presença de séculos na região e do impulso dado pelo Estado Novo à chamada Faina Maior, está por fazer a história desses homens que foram deixados para trás em St. John’s, noutros portos da América do Norte e na Gronelândia. Dionísio Esteves, de Vila Praia de Âncora, Caminha, vai ser o “rosto” deles, graças a um filme que nos permite perceber onde foi enterrado há precisamente 48 anos.

A imagem é de 1966, de 6 de Maio. Num cemitério semiapagado pelo nevoeiro, homens apertados nos seus fatos e gravatas, de ar abatido, escutam orações num inglês que mal entendem, mas cuja cadência reconhecem. Alguns balbuciam as suas preces em português, como se Dionísio Esteves, o que ali está a ser enterrado, melhor fosse encomendado aos céus na sua língua materna. São de pescadores todos estes rostos captados num documentário, 1966 — O Navio Branco, que Hector Lemieux filmou para o National Film Board do Canadá. Nesse ano, o capitão Vitorino Ramalheira e a tripulação do Santa Maria Manuela recuperaram dois homens perdidos no nevoeiro. Mas viram morrer, num acidente de trabalho, o jovem de Vila Praia de Âncora, Caminha. 
Dionísio entrara como “verde” no Santa Maria Manuela em 1960. Segundo a lei, ao completar a sua sétima viagem consecutiva na Pesca do Bacalhau, livrava-se do serviço militar obrigatório e foi com esse espírito que, aos 26 anos, partiu de Lisboa, com a bênção de Salazar e da Igreja, naquela Primavera, num dos famosos veleiros do que ainda restava da chamada Frota Branca portuguesa. Assim baptizada desde que, para assinalar a neutralidade do país, se teve de pintar de branco os navios, na II Guerra. Dionísio ainda tentou levar o irmão Fernando com ele. Mas era duríssima a vida nos dóris, esses botes de um homem só, em que os portugueses da pesca à linha trabalhavam em troca de um salário dependente de quanto pescassem ao longo de seis meses, e o rapaz de 18 anos, já homem feito e com bastante experiência de mar, mas na costa portuguesa, achava-se novo para aquilo.
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Manuel Agonia Cancuja Marques, pescador das Caxinas, trabalhou no navio Santa Maria Manuela em 1960.
Vitorino Ramalheira mantém viva, aos 85 anos, a memória do temporal que apanharam, entre os Açores e o Canadá, no final de Abril desse ano. Dionísio ficou gravemente ferido quando, arrastado pelo mar no convés durante uma manobra, terá embatido num ferro. “Foi na esquina do tanque do óleo do bacalhau”, precisa Manuel Agonia Cancuja Marques, o Nia Cancuja, um dos pescadores de Caxinas e Poça da Barca, Vila do Conde, que trabalhavam naquele mesmo navio. O Gil Eannes estava ainda em Lisboa. Ramalheira ponderou voltar para trás, e deixar o homem nas Ilhas, mas desconfiou da qualidade dos cuidados que ali lhe poderiam ser prestados, explica à Revista 2, justificando, assim, a opção de seguir viagem para a Terra Nova. “E na verdade também nem tínhamos noção da gravidade dos ferimentos, que eram internos”, acrescenta o capitão.
“O navio andava pouco. Ainda não tinha motor auxiliar, demoramos uns três dias a chegar a St. John’s”, contabiliza Nia Cancuja. Acompanhado por um enfermeiro, Dionísio agoniava em silêncio, “no beliche, sem dar uma fala a ninguém” — diz o companheiro, já comovido pela memória — até acabar por morrer na véspera da chegada a terra, a 5 de Maio. “O que nos botava em choque era ter de passar por ele, e ele ali, morto.” No navio, estes tensos momentos de viagem foram poeticamente captados por Rex Tasker, que escreveu e produziu o documentário de Lemieux. “À noite chega o momento da chora” — the soup of sorrow, traduz livre e apropriadamente para inglês o narrador, voz a quebrar um plano silencioso na mesa do rancho. “Diz-se que quem a come voltará aos Bancos [da Terra Nova]. Dionísio não a comerá. Recém-casado, esmagado por uma onda, o seu corpo segue num caixão.”
Nesse dia 5 de Maio, o irmão de Dionísio, Fernando Esteves, acabara de chegar ao portinho de Âncora quando o mandaram de imediato para casa, no bairro dos pescadores, ali a poucos metros, aliviando-o do trabalho de descarga do peixe. Desconfiou. “Quando cheguei, já estava tudo aos gritos”, revive. Alguém os tinha vindo avisar da capitania, para onde eram enviados os telegramas. Cristina, a mulher de Dionísio, enviuvava em seis meses, já grávida de uma filha, Cândida, que nunca chegaria a conhecer o pai. França, para onde emigraram mais tarde, deixou-as mais longe daquela desgraça que vem nas letras pequenas de qualquer contrato de casamento com um pescador, numa cláusula dependente dos humores do mar. O cemitério católico de São João da Terra Nova, onde o tripulante do Santa Maria Manuela foi enterrado, está cheio destas histórias, várias delas portuguesas.
Direito a uma campa

Presença constante nos Grandes Bancos há vários séculos, muitos portugueses foram sendo enterrados na Terra Nova, principalmente em St. Jonh’s, e em outros portos da costa canadiana e da Gronelândia, como acontece aliás com marinheiros das muitas nações que frequentavam, em meados do século XX, aqueles mares. Em Mount Carmel, nos arrabaldes da capital provincial e cidade-abrigo da frota portuguesa, uma placa assinala por exemplo a vala comum de 11 dos 15 fogueiros lusos do SS Florizel, um ferry a vapor que se afundou a 24 de Fevereiro de 1918, quando iniciava mais uma ligação a Nova Iorque. Morreram 93 pessoas. Outros portugueses, muitos deles pescadores de bacalhau, foram sepultados no mesmo local, em número indeterminado, mas o passar dos anos, as intempéries e o abandono deixaram sem identificação as sepulturas, adornadas normalmente com uma frágil cruz em madeira. 
“Os cemitérios deles não são como os nossos. Aquilo é um campo”, descreve Fernando Esteves. Mas ainda assim, Dionísio e os que por lá foram enterrados ainda tiveram direito a uma campa. Outros foram levados pelo mar: que os engolia à socapa, ao abrigo da névoa que se abatia repentina sobre os dóris, ou que os arrastava borda fora dos lugres, como aconteceu no final da década de 50 com Armando Afonso do Águas Santas, outro pescador de Âncora, e um dos vários mortos na Faina Maior a quem o dramaturgo Bernardo Santareno dedicou o seu livro de crónicas marítimas, Nos Mares do Fim do Mundo. Escrita quando o autor viajou como médico da frota bacalhoeira, em 1957 e 1958, a obra, que foge ao registo épico das epopeias marítimas, concentra-se nos episódios quotidianos dos que viviam a bordo em condições absolutamente precárias, no limite do  “aceno da morte” e à mercê, muitas vezes, do seu “beijo gelado”.
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Vitorino Ramalheira, agora com 85 anos, foi o capitão do Santa Maria Manuela
Durante o Estado Novo, período em que a pesca do bacalhau foi submetida a uma organização corporativa que tudo controlava, sob a omnipresença de Henrique Tenreiro, um delegado-geral das Pescas com mais poderes do que os ministros do sector com quem conviveu, os pescadores, na verdade, contavam pouco. Percebeu-se isso logo em 1937. Nesse ano, milhares participaram numa greve em que contestavam as condições impostas pelo regime — por via do recém-criado Grémio dos Armadores de Navios da Pesca do Bacalhau — que os obrigava a se inscreverem no mesmo navio da campanha anterior, o que acabava com a concorrência, entre armadores, pelos melhores pescadores e nivelava os salários para valores tabelados. A paralisação durou semanas, mas os homens acabaram mobilizados à força, após intervenção policial em várias comunidades. Alguns saíram diretamente da prisão para os navios, conta o investigador Álvaro Garrido em O Estado Novo e a Campanha do Bacalhau
Os navios eram, assim, uma extensão do país. Seguindo à boleia das palavras de Bernardo Santareno, nas viagens de seis meses da pesca à linha, os capitães exerciam uma disciplina férrea para conseguirem controlar os humores de dezenas de homens rudes, quase todos de proveniência humilde e com baixas qualificações, capazes de gestos extremos de solidariedade e, ao mesmo tempo, prontos para se pegarem por qualquer insignificância. Estes ansiavam por regressar a casa com o melhor salário possível, o que dependia dos conhecimentos de quem os comandava e teria de os levar aos melhores pesqueiros e, aí chegados, da sua sagacidade e destreza no manejo das linhas de múltiplos anzóis. 
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Ficha de Dionísio Esteves no Grémio dos Armadores de Navios da Pesca do Bacalhau, que morreu há precisamente 48 anos 
O objetivo era encher o porão com bacalhau antes de o Inverno se insinuar, gelando o próprio mar, no caso da Gronelândia. Submetidos a jornadas de trabalho que podiam, por vezes, passar as 20 horas, que o descanso só chegava depois de escalado e salgado o peixe, os pescadores acordavam às 4h, com uma oração, para se lançarem de novo ao mar pouco depois, naquelas “cascas de nozes” que tripulavam sozinhos. Os próprios assumem que nem sempre tinham cuidado. Muitos afastavam-se demais, arriscavam por vezes demais. 
“Como capitão, a minha maior preocupação era não perder nenhum homem. Tentava mantê-los por perto, que o tempo às vezes mudava rapidamente. Mas eles iam, como se nada fosse, contentes por poderem pescar. Eles eram uns heróis. Quando era novo, também tinha aquela adrenalina e fazíamos as coisas naturalmente, mas agora, passados estes anos, digo-o: eles é que eram os heróis”, repete Vitorino Ramalheira, que passou metade da sua vida profissional à procura do bacalhau e que naquele ano de 66, como testemunhou Lemieux, chegou a temer pela vida de outros dois homens, que se perderam no nevoeiro.  
Perante estes riscos, não espanta que, até meados do século XX, em várias comunidades do litoral, as mulheres destes homens tivessem por hábito vestir-se de preto quando eles partiam, e cobrir com panos todo o mobiliário do lar, dormindo, com uma enxerga, no chão. Era como se toda a casa se enlutasse, solidária com as provações deles, por seis meses. Mais do que um mau pressentimento, era uma espera sofrida, por um regresso que nem sempre aconteceu.
Quando as más notícias chegam a casa

Apesar de haver documentação de várias instituições envolvidas neste “desígnio nacional” que era o abastecimento do país com um dos seus alimentos favoritos e de melhor conservação, não se conhece com exatidão o número de baixas na frota portuguesa da pesca do bacalhau durante o Estado Novo. Álvaro Garrido, que é também programador do Museu Marítimo de Ílhavo (MMI), afirma que, da consulta de documentação do Grémio, se contam, em vários anos, três a cinco mortos por campanha. Mas explica que o nível de sinistralidade mortal até tem sido maior nos arrastões. Em todo o caso, o facto é que, se se conhecem bem os casos excecionais, como o afundamento do Maria da Glória, por um submarino, na II Guerra, que matou 36 homens, a grande maioria deles da Fuzeta (Olhão), até hoje ninguém soube dizer quantos, quem eram e de onde partiram esses homens que ficaram nesses mares do Fim do Mundo até ao ocaso da pesca à linha, que coincidiu, em 1974, com o 25 de Abril. 
A revolução pôs os homens em alvoroço. Depois de uma greve em que exigiam que o salário passasse a ser fixo e não dependente do que pescassem, nesse ano, dois dos três últimos navios com dóris, o Ilhavense e o São Jorge, foram ao fundo ao largo da Terra Nova. Muitos dos velhos navios à vela tinham sido abatidos assim, após incêndios alegadamente provocados a mando dos armadores, em que todos, como aconteceu nestes casos, saíam ilesos. E quis a ironia da história que o último exemplar deste tipo de pesca — que no Estado Novo se manteve em paralelo com tecnologias mais modernas e predatórias como o arrasto — se chamasse Novos Mares. Símbolo do fim de uma era, este atravessou o estreito de St. John’s a 24 de Julho de 1974, a caminho de Aveiro, onde foi adaptado para a pesca com redes. Nesse ano, as imagens de dezenas de homens espalhados pelo mar, cada um no seu bote, passou a ser uma memória. Ao mesmo tempo vibrante e triste, pela lembrança dos que por lá ficaram.  
Só na terra de Agonia Cancuja, as Caxinas, ainda hoje demasiadas vezes notícia pelos seus náufragos, contam-se em mais de uma dezena os nomes que a Revista 2 foi descobrindo, numa curta pesquisa, apenas em conversa com alguns pescadores. Várias famílias têm um antepassado que não regressou vivo de uma atividade que, muito dura, era ainda assim bem mais rentável do que a pesca local, feita então com barquinhos pouco maiores do que os dóris usados nos Grandes Bancos. Lugar de recrutamento de cerca de mil bacalhoeiros, esta zona, com a vizinha Póvoa de Varzim, foi uma fonte importante de mão-de-obra, mas foi apenas uma das muitas comunidades piscatórias de norte a sul e das ilhas que, ao longo de quatro décadas, entregaram cerca de 20 mil dos seus àquela vida. 
A cada casa, as más notícias podiam chegar, choque difícil de imaginar, com o navio. Foi isso, segundo Santareno, que aconteceu com a açoriana Rosa Bailão, que lançara foguetes para dar as boas-vindas ao marido, Jorge, que só depois percebeu que se perdera no mar. Mas normalmente elas corriam mais depressa, à velocidade de um telegrama. Em 1965, criança ainda, o caxineiro José Marafona soube pelas lágrimas da mãe — revê-a de papel na mão, grávida, 12 filhos — que o pai, José Gomes Marafona, não regressaria. O corpo, admite a família numa dúvida alimentada pela distância e pelo tempo que entretanto passou, terá sido sepultado na Gronelândia. Como o do ilhavense Manuel Gonçalves Bilelo, de cuja sepultura o Museu Marítimo de Ílhavo guarda uma fotografia tirada por um antigo comandante do Gil Eannes
A história destes homens não será muito diferente da de outros que, até esse ano de 1966, eram levados para um porto próximo. Só depois de Dionísio Esteves, os corpos dos que morriam “começaram a ser trazidos de volta”, explica Fernando Esteves, facto confirmado por Vitorino Ramalheira. O Gil Eannes, que funcionava como navio-hospital mas também como capitania flutuante, “ainda não estava por perto quando se deu o acidente com o Dionísio. Tive de tomar uma decisão”, relembra este homem, natural de Ílhavo, descendente de uma linhagem de marinheiros e filho de outro famoso capitão de navios bacalhoeiros, João Ramalheira.   
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O ilhavense Manuel Bilelo foi sepultado na Gronelândia. DE muitos outros perdeu-se-lhes o rasto 
Um dos amigos do capitão Vitorino Ramalheira, Francisco Teles Paião, comandava o Rio Antuã em 1962 quando, a 7 de Setembro, dois ou três dias antes da viagem de regresso para Portugal, perdeu o seu melhor pescador. Chama-se José Francisco Marques, Zé da Ferrucha, este caxineiro de 39 anos que viu o seu dóri carregado afundar sem que alguém lhe desse a mão. Foi no Mar da Barrinha, na costa oeste da Gronelândia, precisa o irmão Joaquim, 77 anos bem conservados, que não esconde que a ambição que elevara o Zé da Ferrucha à condição de “special” do Rio Antuã — atribuído a quem pescasse muito mais bacalhau do que os outros — pode bem ter sido o que levou à morte. A ele como a outros, levados ao fundo do mar por uma ganância estimulada pelo sistema de remuneração variável. “Nós contribuíamos para isso, ao afixar a tabela com a classificação de cada um, ao longo da viagem”, assume hoje o capitão Ramalheira. 
Naquele dia, como habitualmente, José Francisco Marques enchera o bote. Afastara-se dos outros, como muitas vezes fazia, e aparecera depois carregado ao pé do dóri do irmão, que ainda pescava. Foi seguindo viagem para o navio-mãe, a remos, quando o tempo virou, trazendo névoa e um vento que levantou a marola da água. Confiante, o caxineiro despachara a companhia de outro pescador que se aproximou dele, mais leve de carga. Seguia sozinho, quando, de longe, o irmão ouviu os gritos, três, cuja origem só percebeu quando, chegando ao Rio Antuã, viu que só o Zé da Ferrucha não estava ainda a bordo. De pouco valera a Joaquim aquele “Oxalá não seja do meu lado” que a sua cabeça inventara minutos antes, ao ouvir o socorro longínquo, no mar. E de pouco valera a José a sua destreza. Nos mares gélidos da Gronelândia, a morte chega rápida e ele, sabendo-o, amarrou um pulso ao balão dos seus aparelhos de pesca.
Foi assim que o encontraram, ao Zé da Ferrucha — bacalhoeiro desde 1938 — naquele ano em que pela primeira vez, no Rio Antuã, não pescara com o dóri número 13, o do dia da Senhora de Fátima. Os barcos foram nessa viagem sorteados pelo capitão e calhou-lhe o 42. Anos antes, numa colecção de cromos sobre seres vivos que fez a delícia da criançada, este era o número do bacalhau, uma estampilha “marcada”, por ser difícil de encontrar. E ficou tão famosa aquela caderneta que, deste então, e como recorda o irmão, no jogo do loto, o 42 é cantado como “O Bacalhau”, nas Caxinas. Mas de nada valeu este aparente golpe de sorte ao exímio pescador. 
José Francisco Marques deixou mulher e quatro filhos. Longe de casa, o seu corpo seguiu para o navio-hospital Gil Eannes, que o transportou para o porto da localidade de Holsteinsborg, actual Sisimiut, na Gronelândia, para ser enterrado. Este porto com pequeno hospital, de difícil entrada, segundo Santareno, tinha “fama de perigoso”, por causa de várias pedras que dificultavam a navegação. Mas foi bastante utilizado pela frota portuguesa.
A memória da Grande Pesca

A perda do pai não demoveu Manuel Marques, então com 17 anos, da vontade de experimentar a pesca do bacalhau. E foi pela mão do tio Joaquim que, na Primavera de 1963, entrou naquele mesmo barco de onde José fora levado num caixão, sete meses antes. O capitão Francisco Teles Paião, que declinou um convite da Revista 2 para um depoimento sobre estes episódios, tê-lo-á recebido a bordo com uma amabilidade estranha ao relacionamento habitual, distante, entre oficiais e pescadores. “Ele era duro, mas tinha bom coração”, descreve o caxineiro, que, pelo Natal, mantém o hábito de contactar aquele homem de Ílhavo, outro descendente de uma linhagem de capitães cujo pai comandava então o Argus, um dos dois barcos — o outro é o Santa Maria Manuela — que Aníbal Paião, dono da Pascoal & Filhos, comprou recentemente, para o recuperar e manter, assim, na esfera da família, a memória da Grande Pesca.
Como quase todos os bacalhoeiros, Manuel Marques também mantém fresca, como que conservada em sal, a sua memória daqueles anos. Principalmente do de 1967, em que um problema grave nos pulmões o obrigou a uma cirurgia em St. John’s e posterior convalescença no Gil Eannes, onde chegou a estar em isolamento. Já quase recuperado, soube que o navio-hospital, que então navegava ao largo da Gronelândia, ia passar por Holsteinsborg, e pediu que o deixassem ir a terra, para ver a sepultura do pai. Um grupo, que incluía entre outros Jaime Pontes, outro caxineiro, pescador noAvis, e Manuel Agonia Maio, da Poça da Barca, e tripulante do Dom Deniz, foi então enviado à pequena localidade. Jaime recorda bem que lhes deram tinta e madeira, para que, se fosse necessário, recuperassem as cruzes das sepulturas de portugueses — cerca de dez, doze, Manuel já não sabe precisar. Nos últimos anos, os filhos dele contactaram a paróquia de Sisimiut, de onde lhes disseram que as campas já não estavam identificadas.
Há dois anos, um canadiano com raízes nas pequenas ilhas francesas de Saint Pierre e Miquelon, no Sul da Terra Nova, foi contactado a partir de Portugal por um amigo, Pedro Pinto — antigo capitão de navios bacalhoeiros e actual coordenador de operações da Agência Europeia de Controlo das Pescas — e pelo comandante da corveta António Enes, da Marinha. De partida para mais uma acção de fiscalização nas águas da Organização das Pescas do Atlântico Noroeste (NAFO, em inglês), pretendiam ambos fazer uma cerimónia militar de homenagem aos portugueses e Jean-Pierre Andrieux, empresário e estudioso da nossa presença nesta região, pareceu-lhes o homem certo para a organizar.
A Andrieux, a parada e a deposição de flores, em Agosto de 2012, soube-lhe a pouco, mesmo que repetida anualmente, como acontece desde então. Há dezenas de anos que o canadiano acompanha os portugueses, fruto de uma amizade que nasceu nos inícios de 1980, à mesa dos oficiais do Vimeiro, que aportara em Saint Pierre. Foi ali que o empresário, dono de um hotel, e a mulher, Elisabeth, conheceram um dos seus grandes amigos, Francisco Paião, que comandava então esse outro navio. Ele é um de vários portugueses, quase todos da região de Aveiro, que fazem questão de visitar todos os anos, em longas férias que vêm repetindo há um quarto de século e que os trouxeram a Portugal em Março e Abril deste ano. Mas desta vez, para além da vontade de rever Paião, Ramalheira e outros, o casal trouxe na bagagem um propósito maior: o de garantir, este ano ainda, esperam, uma homenagem perene aos marinheiros de que tanto ouviram falar. 
“A memória daqueles pescadores tem de ser preservada”, insiste este canadiano de 66 anos que ouviu as histórias da Frota Branca nesses jantares em que provou o vinho verde e outros sabores que, terminada a moratória de pesca nos Grandes Bancos, voltaram em 2010 a atravessar o Atlântico com os (agora poucos) navios bacalhoeiros. No novo hotel que entretanto abriu em St. John’s, há coleções de peças pertencentes aos serviços de mesa de muitos dos antigos lugres e, na biblioteca, há uma miniatura à escala do Gazela Primeiro, mítico veleiro que, em 1969, fez a sua última viagem à pesca do bacalhau. Em sua casa, para além de bóias do Gil Eannes, guarda umas 40 mil fotografias de navios, centenas delas documentando a presença lusa nas águas da Terra Nova. “Isto representou uma mudança também na minha vida e na da minha família. Portugal passou a fazer parte de nós”, assume este homem que dedicou um dos volumes da sua obra Acidentes e Naufrágios na Terra Nova e Labrador ao período entre 1940-1980 e, especialmente, à Frota Branca.  
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O irmão do Zé da Ferreucha, Joaquim, que com ele trabalhava quando o dóris afundou 
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Manuel Marques, filho do Zé da Ferrucha, pescador que morreu com o seu dóris carregado na costa oesta da Gronelândia 
Conhecido o homem, percebe-se porque se meteu Andrieux, nos últimos anos, num esforço de angariação de fundos para construir um monumento aos portugueses enterrados em St. John’s. Em Outubro, organizou um jantar, com comida e música portuguesa, e os seus conterrâneos pagaram cem dólares (quase 66 euros) por cabeça para participar. Apesar de problemas pontuais, de alguma discriminação testemunhada por vários pescadores noutros tempos, passados estes anos, “é forte e boa a memória dos portugueses, principalmente do tempo da Frota Branca, nas décadas de 50 e 60, em que eles chegavam aos milhares à cidade”, nota o empresário. O ar humilde, as camisas de padrão axadrezado, os jogos de bola com que se entretinham no cais que os abrigava das tempestades nos Bancos e o ar de museu vivo daqueles veleiros, linhas de mastros a marcar o horizonte, criaram uma aura. “Que não foi esquecida”, acrescenta, justificando assim os 7500 dólares angariados.  
A estátua, cujo desenho ainda está a ser pensado, vai ser construída nos próximos meses em Portugal e viajará para a Terra Nova como aqueles que vai homenagear: num navio bacalhoeiro. No cemitério de Mount Carmel, será uma marca perene junto de sepulturas sem nomes. “É triste não estarem identificados”, lamenta o empresário que escreveu sobre contrabandistas de álcool durante a lei seca, sobre as ilhas Francesas onde nasceu, sobre os Grandes Bancos de pesca e que, no ano passado, publicou The White Fleet — An History of the Portuguese Handliners. É o seu contributo para a história de uma saga que inspirou grandes obras como A Campanha do Argus, de Alan Villiers (livro de 1951, que acaba de ter a sua terceira reedição, uma parceria da Cavalo de Ferro com o MMI), e que apaixonou também o cinema, como se pode ver em Captain Corageous (1937), filme a partir da obra homónima de Rudyard Kipling que valeu a Spencer Tracy um Óscar de melhor ator pelo papel de Manuel, um pescador português.  
A atracão da Sétima Arte pelos veleiros portugueses foi imensa. Villiers filmou (e fotografou) uma das viagens do mítico Argus, um veleiro construído no século XIX, e, entre vários outros, George Sluizer gravou em 1967 para a National Geographic o documentário The Lonely Dorymen, passado nos navios José Alberto e Vila do Conde. Mas a película de Lemieux, filmada um ano antes a bordo do Santa Maria Manuela, acabou por ter outro significado, ao deixar para a posteridade uma imagem do lugar onde foi enterrado Dionísio Esteves, o que o retirou do anonimato a que o tempo o votara. Graças ao plano do cemitério, a homenagem aos portugueses vai ter um rosto, o do jovem bacalhoeiro de Vila Praia de Âncora que morreu há 48 anos.
O pai de Dionísio também andara nos Grandes Bancos. E Fernando acabou por ir para lá em 1967, num arrastão, escapando aos trabalhos árduos da pesca à linha e, como era benesse da legislação desde 1927, livrando-se do serviço militar. Escolheu esse outro mar para fugir ao Ultramar, onde a morte espreitava no mato. Andou por ali mais do que os sete anos que a lei equivalia à tropa, marcou o corpo com cicatrizes, perdeu o baço, mas pôde visitar o irmão, uma vez. De outras que tentou, “a neve no monte”, recorda, impedia-o de perceber onde estaria enterrado. E depois a vida levou-o para outros mares, os de África, onde correu o mapa até ao cabo da Boa Esperança, antes de se fixar de novo na pesca costeira, na terra natal.
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O empresário canadiano Jean-Pierre Andrieux não quer deixar morrer a memória dos portugueses que andaram na pesca do bacalhau 
Reformado, Fernando Esteves acalenta agora a esperança noutra viagem, que o leve a ver de novo a sepultura do irmão. Em Março deste ano, Jean-Pierre Andrieux esteve com ex-bacalhoeiros em Caminha, a convite da câmara local — que assim lhe agradeceu o gesto em memória de Dionísio — e fez questão de o convidar a participar na homenagem que está a organizar. O canadiano garante que se arranjará maneira de custear a deslocação deste homem. Conheceram-se num almoço que terminou com um bolo, um doce em forma de bacalhau salgado-seco, e no qual não faltou, a abrir, a chora, uma sopa de bacalhau antes servida no rancho da proa dos navios e hoje transformada em iguaria gourmet. Se for verdade o que diziam os antigos, ao comê-la, Fernando talvez tenha garantido o seu bilhete de regresso à Terra Nova. 

Ao meu bisavô Abel, que em 1910 já andava pela Terra Nova e que para lá levou meia dúzia de filhos, tendo perdido um deles no mar, nessas viagens. À Cândida, que não conheço e que nunca conheceu o pai, Dionísio Esteves. Ao meu pai, Abel, que, como a maioria, felizmente, teve a sorte de ir e voltar.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Fátima: Sinal de proximidade


 

 

 

As aparições de Nossa Senhora são uma manifestação da solicitude materna da Bem-Aventurada Virgem Maria para connosco. São um sinal da proximidade de Nossa Senhora aos nossos problemas e às nossas dificuldades; são expressão do desejo de Nossa Senhora de nos socorrer, a nós homens e mulheres, envolvidos neste mundo na luta contra as forças do mal; são um sinal da sua misericórdia materna.
 
A Igreja considerou sempre as aparições e as visões como pertencentes à esfera pessoal, porque nada acrescentam a quanto já conhecemos graças à revelação pública contida na Sagrada Escritura. Por isso a Igreja nunca quis vincular a fé a estas manifestações. As suas intervenções limitam-se a permitir oficialmente o seu culto. Mas as nossas certezas estão fundadas na Sagrada Escritura, isto é, na revelação divina que se encerrou com a morte do último apóstolo.
 
As aparições de Nossa Senhora aqui em Fátima são um apelo à conversão, à penitência, à oração e à santidade. Por conseguinte, o conteúdo do apelo de Fátima está profundamente radicado no Evangelho, porque a mensagem de Fátima coincide com a mensagem evangélica.
É — repito — uma chamada a mudar a vida, a rezar e a fazer penitência.
 
Giovanni Battista Re
 
Mais em:
 

Em economia pequeno é bom

«O pequeno é bom» e «eficaz»: afirmou o Papa Francisco numa mensagem enviada aos participantes no terceiro Fórum mundial de desenvolvimento local, que está a decorrer em Turim de 13 a 16 de Outubro. Depois de ter definido «oportuna» a iniciativa de reflexão e diálogo «sobre as potencialidades do desenvolvimento económico local, como motor de uma visão diferente da economia, do desenvolvimento, da relação com a terra e entre as pessoas».
 
Francisco auspiciou que «Deus conceda luzes e inspirações» aos participantes no encontro. De facto, ele é «muito importante para promover a Agenda 2030» – com os seus corolários da inclusão, da defesa do meio ambiente e de um desenvolvimento humano integral» – cuja concretização efetiva parece cada vez mais «urgente e indispensável».
 
A este propósito o Papa advertiu contra o «duplo perigo» de «se limitar ao ato burocrático de redigir longas listas de bons propósitos ou acreditar que uma única solução teórica e apriorista possa responder a todos os desafios», exortando a ter «sempre presente que, antes e além dos planos e programas, há as mulheres e homens reais, iguais aos governantes, que vivem, lutam e sofrem».
 
E porque «o desenvolvimento humano integral e o pleno exercício da dignidade humana devem ser construídos e realizados por cada um, por cada família, em comunhão com os outros seres humanos e numa justa relação com os âmbitos nos quais se desenvolve a sociedade humana», para Francisco «o desenvolvimento económico local» pode ser «a resposta mais adequada aos desafios que nos são apresentados por uma economia globalizada e com frequência cruel nos seus resultados».
 
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segunda-feira, 6 de julho de 2015

Papa Francisco na América Latina

(Lusa)
Quito, 05 jul 2015 (Ecclesia) – O Papa Francisco chegou hoje ao Equador, após um voo de quase 12 horas, iniciando uma visita de nove dias à América Latina com alertas contra a exclusão e apelos em favor dos mais “vulneráveis”.
“Que as realizações alcançadas no progresso e desenvolvimento possam garantir um futuro melhor para todos, prestando especial atenção aos nossos irmãos mais frágeis e às minorias mais vulneráveis, que são a dívida que toda a América Latina continua a ter”, pediu, no primeiro discurso da viagem, no aeroporto internacional de Quito, perante autoridades civis e religiosas equatorianas, para além de representações das comunidades indígenas locais.
O primeiro Papa latino-americano da história da Igreja Católica manifestou a sua “alegria e gratidão”, “entusiasmo e esperança” ao regressar ao seu continente natal, elogiando o acolhimento equatoriano.
“Agradeço a Deus por me ter permitido voltar à América Latina e estar aqui hoje, convosco, nesta linda terra do Equador”, confessou.
Francisco recordou que no passado visitou o Equador por vários motivos e apresentou-se hoje como “testemunha da misericórdia de Deus e da fé em Jesus Cristo”.
A intervenção recordou que a fé católica “modelou a identidade” do país, gerando vários santos que “viveram a fé com intensidade e entusiasmo e, praticando a misericórdia, contribuíram para melhorar, em diferentes áreas, a sociedade equatoriana do seu tempo”.
“Hoje, também nós podemos encontrar no Evangelho as chaves que nos permitam enfrentar os desafios atuais, avaliando as diferenças, fomentando o diálogo e a participação sem exclusões”, apelou.
Francisco disse ao presidente equatoriano que pode contar com “o empenho e a colaboração da Igreja para servir” um povo “que se levantou, com dignidade”.
“Daqui quero abraçar todo o Equador: desde o cume do Chimborazo até às costas do Pacífico, desde a selva amazónica até às Ilhas Galápagos, nunca percais a capacidade de dar graças a Deus pelo que Ele fez e faz por vós”, declarou.
Já o presidente do Equador, Rafael Correa, sublinhou a diversidade do país e as visões comuns com a Igreja Católica na defesa da vida, da família e da natureza, falando do Papa como um “gigante moral” face à “injusta distribuição dos recursos”.
No final da cerimónia das boas-vindas, Francisco seguiu para a Nunciatura Apostólica de Quito (representação diplomática da Santa Sé), onde vai ficar alojado, num percurso de cerca de oito quilómetros.
Dezenas de milhares de pessoas acompanharam a deslocação, feita num carro utilitário e, depois, em papamóvel aberto.
Ver filme em: https://www.youtube.com/watch?v=29-tafcTf7U

quarta-feira, 1 de julho de 2015

O Início do Papado por um Pescador Analfabeto


Considerações iniciais


Jesus-Pescadores
Segundo o Novo Testamento, o apóstolo Pedro era um pescador analfabeto

Preparado para ser postado especialmente no Dia de São Pedro, 29/06, o estudo abaixo mostra como é curioso saber que o papado da religião com o maior número de seguidores no mundo, o Cristianismo, que apesar da grandiosidade e da riqueza, teve a origem da sua tradição num pescador analfabeto, o apóstolo Pedro. Ademais, expõe que a sua liderança, nos primeiros anos da Igreja, tornou-se uma dúvida após a descoberta de textos perdidos por muitos séculos. Alguns historiadores concluem que a ideia da liderança do apóstolo Pedro, desde o início do Cristianismo, foi uma manipulação ideológica arquitetada pela corrente dominante, que fez apagar a rivalidade com outros líderes, sobretudo Maria Madalena, e desaparecer os textos que apresentavam as ideias contrárias. Ademais, o estudo aponta o ambiente culturalmente precário da região onde surgiu o Cristianismo, bem como o posicionamento dos seus primeiros adeptos nas camadas culturais mais baixas da sociedade na época.

Parece que o primeiro papa alfabetizado, de quem se tem registro, foi Clemente I, que foi bispo em Roma de 91 a 101 e.c., sucedendo o apóstolo Pedro (morto em 64 e.c.), a Lino (68-78 e.c.) e a Anacleto (79-91 e.c.), portanto o quarto papa na sequência sucessória (Kelly, 1988: 05-8). A alfabetização de Clemente I é atestada, pois deixou documentos escritos (cartas e homilias).

O analfabetismo na Antiguidade

Grande parte do que conhecemos sobre a Antiguidade é conhecida pela literatura registrada pelos escritores daquela época. Em vista da quantidade de textos e da beleza de muitos deles, muitos leitores atuais são levados a pensar que o letramento era um fato comum e disseminado entre a população antiga.  Nada mais enganoso. Pesquisas apontam que “no mundo antigo, a maioria das pessoas não sabia ler” (…) e “que aquilo que conhecemos por letramento universal é um fenômeno moderno que só surgiu com o advento da Revolução Industrial” (…) “até o período moderno, quase todas as sociedades apresentavam apenas uma pequena minoria da população capaz de ler e escrever” (Ehrman, 2006: 47). Bart D. Ehrman continua: “Isto se aplica até mesmo às sociedades antigas que estimulavam a leitura e a escrita – por exemplo, a Roma dos primeiros séculos cristãos, ou até mesmo a Grécia do período clássico” (Ehrman, 2006: 47). Em seguida ele aponta que: “o melhor e mais influente estudo sobre o letramento nos tempos antigos, feito pelo professor da Universidade de Columbia, William Harris, indica que nos tempos e lugares mais propícios – por exemplo, Atenas à altura do período clássico do século V a.e.c. – as taxas de alfabetização raramente atingiam de 10 a 15% da população. Transpondo os números, isto significa que, nas melhores condições, de 85 a 90% da população não podia ler ou escrever. No século I cristão, na época do Império Romano, as taxas de alfabetização podem ter sido mais irrisórias ainda” (Ehrman, 2006: 47-8).  Na região de Israel, a situação era pior ainda: “… não é exagero dizer que o índice total de alfabetismo na terra de Israel naquele tempo (primeiros séculos e.c.), de judeus somente, era provavelmente de menos de 3%” (Bar-ilam, 1992: 46). Enfim, a alfabetização, e ainda bem mais a erudição, eram privilégios de muitos poucos na Antiguidade.

A precariedade cultural dos primeiros cristãos

Se o índice de analfabetismo era alto, mesmo nos períodos e nos lugares favoráveis à cultura, tal como indicados acima, imagine na região da Palestina do século I, tão distante dos grandes centros culturais da época (Atenas, Roma, Alexandria e Pérgamo, bem como mais distante ainda dos centros culturais da Índia e da China – o grande centro cultural dos persas, Persépolis, já tinha sido destruído). Aquela era uma região situada na periferia cultural do Império Romano. Quando lemos sobre pessoa erudita daquela região e época, seu saber se restringia ao conhecimento religioso, enquanto que nos grandes centros culturais já se cultivada e ensinava a erudição filosófica, científica, artística, literária, poética, teatral, política e retórica. Portanto, naquela região, o pouco de saber que existia era o equivalente exclusivo ao saber religioso, enfim, a religião era a única erudição, ou seja, só existia educação religiosa, pois esta deve ser a razão de não se ter registro da existência de algum texto (oral ou escrito), que não seja religioso, naquela época e região.

         Que o Cristianismo surgiu e se desenvolveu nos primeiros anos em comunidades formadas por cristão das classes culturais mais baixas, está confirmado em alguns dos primeiros documentos. Inicialmente era uma religião de incultos dirigida para os também incultos, até que, gradativamente, membros mais instruídos passaram a integrar suas comunidades. Uma das mais interessantes fontes que constata o baixo nível cultural dos primeiros cristãos é a obra Contra Celso (Adversus Celsus), do final do século II e.c., de autoria de Orígenes, um dos mais importantes teólogos dos primeiros séculos. Nela Orígenes contesta as críticas de Celso ao Cristianismo, numa obra perdida denominada A Palavra Verdadeira. “Uma das imputações era que os cristãos são pessoas ignorantes, de baixa extração. O que é impressionante é que, em sua réplica, Orígenes não nega isso” (Ehrman, 2006: 51). Veja as indicações da precariedade cultural dos cristãos por Celso: “Eis a palavra de ordem deles (os cristãos): para trás quem tem cultura, quem tem sabedoria, quem tem discernimento. (…) Mas se tiver algum ignorante, insensato, inculto, uma criança, que se aproxime com coragem” (Contra Celso, 3.44 – Ehrman, 2006: 51). Estes últimos eram os alvos preferidos dos cristãos para a conversão. Em seguida, ele prossegue dizendo que os cristãos “jamais se aproximam de uma assembleia de homens prudentes com a audácia de nela revelar seus mistérios. Mas, logo que percebem a presença de adolescentes, de um bando de escravos, de um ajuntamento de idiotas, para lá correm a se exibir” (Contra Celso, 3.50 – Ehrman, 2006: 51). Mais adiante aponta os ofícios braçais exercidos pelos cristãos: “cardadores, sapateiros, pisoeiros”, ou seja: “pessoas das mais incultas e rudes”. E o silêncio dos cristãos diante de pessoas cultas: “Diante de mestres cheios de experiência e discernimento não ousam abrir a boca. Mas é só surpreenderem seus filhos acompanhados de mulheres incultas e idiotas, que começam a falar coisas estranhas sem consideração com o pai ou com os preceptores… os outros não passam de impertinentes estúpidos. Eis aí com que palavras os persuadem” (Contra Celso, 3.55 – Ehrman, 2006: 51). Sobre esta passagem, Orígenes contesta que os cristãos “são sábios, mas são sábios no que refere a deus, não no que refere às coisas do mundo. Em outros termos, ele não nega que a comunidade cristã seja amplamente constituída de classes de baixa extração, pouco instruídas” (Ehman, 2006: 51). Concluindo, a única cultura existente naquela época e naquela região, afastada dos centros culturais, era a cultura religiosa, de modo que somente os religiosos eram cultos. Bem, como diz um ditado popular: “numa terra de cegos, quem tem apenas um olho é rei”, podemos imaginar como deveria ser o deslumbramento dos analfabetos e dos cristãos incultos diante dos poucos religiosos letrados da época.

            Outro exemplo da precariedade cultural dos primeiros cristãos está num texto cristão do século II e.c., o Pastor de Hermas, num episódio quando Hermas afirma não se recordar de todo um livro que lhe foi ditado, então ele pede para fazer uma cópia manuscrita: “Eu o tomei (o livro) e fui para outra parte do campo, onde copiei todo o conjunto, letra por letra, mesmo não sabendo distinguir as sílabas. E, no final, quando completei as letras do livro, ele foi…” (Pastor de Hermas, 5.4 – Ehrman, 2006: 58). Este texto foi muito estimado nos primeiros anos do Cristianismo, tanto que chegou a fazer parte do Novo Testamento em alguns dos primeiros códices cristãos (Ehrman, 2006: 57). O analfabetismo de Hermas é explícito: “copiei todo o conjunto, letra por letra, mesmo não sabendo distinguir as sílabas”, e representa a mais clara menção ao analfabetismo dos primeiros cristãos. Em vista desta precariedade, Bart D. Ehrman afirma que as transcrições dos primeiros manuscritos, por copistas cristãos, estão repletas de erros. Orígenes observou esta deficiência: “As diferenças entre os manuscritos se tornaram gritantes, ou pela negligência de alguns copistas ou pela audácia perversa de outros…” (Contra Celso, 2.27 – Ehrman, 2006: 62). Para solucionar isto, algumas primeiras comunidades cristãs contratavam copistas profissionais para copiarem seus manuscritos, até que copistas cristãos educados e bem treinados gradualmente ingressaram na Igreja. Em suma, estes são exemplos do primitivo ambiente cultural, no qual o Cristianismo surgiu, e da precariedade intelectual dos primeiros adeptos cristãos.

Mais um exemplo da ignorância dos primeiros compositores de textos cristãos, agora num texto apócrifo, aparece no trecho final do Evangelho de Pedro, quando este apóstolo estando em Jerusalém afirma: “Eu, Simão Pedro, de minha parte, e André, meu irmão, pegamos nossas redes e dirigimo-nos ao mar, indo em nossa companhia Levi, filho de Alfeu, quem o senhor…” (XIV.60 – Elliott, 1993: 158 e Ehrman, 2003: 34). A ignorância geográfica do autor deste evangelho é absurda, uma vez que Jerusalém não é banhada pelo mar, portanto não existe razão para a presença de redes de pesca naquela cidade.

A disputa pela liderança entre o apóstolo Pedro e Maria Madalena

Pedro (morto em 64 e.c.) foi considerado pela Igreja como o príncipe dos apóstolos e o primeiro papa. Seu nome original era Simon, português Simão, depois recebeu o nome (talvez apelido) de Pedro (latim: Petrus), que é a forma masculinizada do substantivo feminino em latim petra (pedra), do aramaico cephas e do grego petros. Foi um dos primeiros seguidores de Jesus e lhe foi concedido o papel de líder e de porta-voz dos apóstolos conforme o Novo Testamento. Estava presente nos principais eventos na vida de Jesus segundo os Evangelhos Canônicos (Kelly, 1998: 05). Tanto o evangelho canônico de Mateus (4.18) como o apócrifo Evangelho de Pedro (XIV.60) concordam que ele era um pescador. Uma vez que seus atos são bem conhecidos dos leitores da Bíblia, não é necessária a repetição aqui.

            Curiosamente, a literatura apócrifa de Pedro, recuperada até hoje, é bem mais numerosa que a canônica. Se reunidos os textos mais completos e os fragmentos, existem os seguintes documentos:

a) Ministério:
– O Evangelho de Pedro (Elliott, 1993: 150-8 e Ehrman, 2003: 31-4)
– A Pregação de Pedro – Kerigma Petrou (Elliott, 1993: 20-3 e Ehrman, 2003: 236-8)
b) Atos:
– Os Atos de Pedro (Elliott, 1993: 390-426 e Ehrman, 2003: 135-54)
– Os Atos de Pedro e dos Doze Apóstolos (Robinson, 2007: 248-54)
c) Apocalipse:
– O Apocalipse de Pedro (Elliot, 1993: 593-612 e Ehrman, 2003: 280-7)
– O Apocalipse Copta de Pedro (Ehrman, 2003: 78-81 e Robinson, 2007: 319-24)
d) Epistolas:
– A Carta de Pedro a Felipe (Ehrman, 2003: 195-200 e Robinson, 2007: 367-72)
– A Carta de Pedro a Tiago e sua Recepção (Ehrman, 2003: 191-4)
– e A Epistula Petri (Elliott, 1993: 433-9).

            Agora, o que precisa ser informado e também discutido é que a aceitação da liderança de Pedro não era uma unanimidade nos primeiros anos do Cristianismo, tal como transmite o Novo Testamento e os relatos dos primeiros padres, conservados pela Igreja Católica. Após a descoberta dos manuscritos de Nag Hammadi, sobretudo a do Evangelho de Maria Madalena, os historiadores foram obrigados a repensar a posição de Pedro, tanto no tempo do ministério de Jesus, como também nos primeiros anos do Cristianismo (D’Angelo, 1999: 105-6). Maria Madalena é altamente estimada nos textos gnósticos, nalgumas passagens chega a aparecer como uma discípula predileta de Jesus, a qual recebia ensinamentos secretos que eram ocultados dos outros apóstolos. O Evangelho de Maria Madalena diz: “Maria disse: O que a vós está oculto eu vos proclamarei” (Ehrman, 2003: 36 e Wilson, 2007: 443). Ela é elogiada em alguns trechos: “Pedro disse a Maria: irmã, nós sabemos que o Salvador amava a ti mais que todas as mulheres” (Evangelho de Maria – Ehrman, 2003: 36 e Wilson, 2007: 443) e numa passagem do Pistis Sophia dos gnósticos: “Jesus, o compassivo, respondeu e disse à Maria: Maria, tu és abençoada, a quem eu ensinarei todos os mistérios das alturas (…) tu, cujo coração está elevado ao reino do céu mais que de teus irmãos” (Mead, 1921: 20).

Ela participa ativamente em alguns diálogos, deixando até transparecer um papel de liderança. Em razão disto, seu relacionamento com Pedro não parecia ser muito amistoso. Nas palavras de Karen L. King: “O confronto de Maria e Pedro, uma sequência também encontrada em O Evangelho de Tomé, Pistis Sophia e O Evangelho dos Egípcios, reflete algumas tensões do Cristianismo do século II. Pedro e André representam as posições ortodoxas que negam a validade da revelação esotérica e rejeita a autoridade da mulher no ensinamento. O Evangelho de Maria ataca ambas as posições de frente por meio da figura de Maria Madalena. Ela é a amada do Salvador, possuidora do conhecimento e do ensinamento superior àquelas da tradição apostólica pública” (King, 2007: 442).  Veja como Pedro discrimina Maria no Evangelho de Tomé: “Simão Pedro disse a ele (Jesus): Permite que Maria nos deixe, pois as mulheres não são dignas da vida”. Então a estranha resposta de Jesus: “Jesus disse: eu mesmo devo guiá-la para fazer dela um homem, para que ela possa se tornar um espírito vivo semelhante a vós homens. Pois, cada mulher que fizer dela mesma um homem, entrará no reino do céu” (Ehrman, 2003: 28 e Lambdin, 2007: 125). O diálogo se transforma em discussão hostil no Evangelho de Maria, quando Maria fala de alguns ensinamentos secretos que recebeu de Jesus. Ao terminar seu discurso, André a contesta com as seguintes palavras: “Eu pelo menos não acredito que o Salvador disse isto. Pois, certamente, esses ensinamentos são ideias estranhas”. Pedro então entra na coversa e questiona: “Ele (Jesus) realmente falou com uma mulher sem o nosso conhecimento e não abertamente conosco? Vamos todos mudar de posição e ouvi-la? Ele preferiu a ela a nós?” Então Maria responde a Pedro: “Meu irmão Pedro, o que pensas? Tu crês que eu mesma inventei estas coisas no meu coração, ou que estava mentindo sobre o Salvador?” Em seguida Levi entra na conversa e acalma o clima (Ehrman, 2003: 37 e Wilson, 2007: 444).

O analfabetismo do apóstolo Pedro

A clara referencia ao analfabetismo do apóstolo Pedro aparece em Atos dos Apóstolos 4.13: “Vendo eles a coragem de Pedro e de João, e considerando que eram homens sem instrução e idiotas, admiravam-se”. No original grego consultado, a expressão traduzida como “sem instrução” é agrammatoi, que Jerônimo na Vulgata traduziu para o Latim como sine litteris e a palavra “idiotas” no Grego é idiotai e no Latim idiotae. A tradução desta última palavra é especialmente curiosa nas Bíblias, uma vez que os tradutores e os editores procuram encobrir a carga pejorativa do seu significado etimológico (idiotai), utilizando de um artifício eufemístico, traduzindo-a então por outra palavra de menor carga humilhante (ex: sem estudos, sem conhecimentos, sem instrução, etc.), mas nunca como ‘idiotas’ ou ‘analfabetos’.

Uma discutida menção do analfabetismo de Pedro aparece na saudação final de sua Primeira Epístola, 5.12: “Por meio de Silvano, que estimo como um irmão fiel, vos escrevi resumidamente…”.  Intérpretes discutem se na frase “por meio de Silvano” (Grego: dia siluanou e Latim: per silvanum) o sentido é de que a carta foi escrita por Pedro e apenas enviada por Silvano, ou mesmo, escrita por outro escriba e enviada por Silvano ou, também, foi ditada por Pedro e redigida por Silvano. Para aqueles que levam em conta a passagem, na qual ele é mencionado como analfabeto nos Atos dos Apóstolos (4.13), as duas últimas hipóteses são as mais plausíveis. Para os que não acreditam que Pedro era analfabeto, o fundamento é a expressão “escrevi” (Grego: egrafa e Latim: scripsi), a qual é entendida referir-se à redação do próprio Pedro. Acontece que, segundo os historiadores, na Antiguidade, uma vez que o número de analfabetos era grande, era comum contratar o trabalho de redação de escribas que, quando estes últimos redigiam as cartas ou comunicados, escreviam como que se as cartas fossem escritas pelas pessoas que a ditavam, ou seja, os remetentes. De modo que, assim, parecia que quem tinha escrito a carta era a pessoa analfabeta, a qual, na verdade, tinha apenas ditado a carta para o escriba redigir. Agora, a passagem em Atos dos Apóstolos 4.13 é muito explícita quanto ao analfabetismo de Pedro, somada ao fato de ser um pescador, bem como aos altos índices de analfabetismo da Antiguidade, maior ainda naquela região afastada dos grandes centos culturais, são mais favoráveis à conclusão de que Pedro era analfabeto e que, certamente, teve de ditar a carta para a redação de Silvano.

Obras consultadas

D’ANGELO, Mary Rose. The Case of Mary Magdalene em Women & Christian Origins. New York/Oxford: Oxford University Press, 1999, 105-28.
DONALDSON, James and Alexander Roberts (eds.). Early Church Fathers – Ante-Nicene Fathers, vols. I, II, III e IV. Edinburg: T&T Clark, 1885, reprint Grand Rapids: Wm. B. Eerdman Publishing Company.
BAR-ILAM, Meir. Illiteracy in the Land of Israel in the First Centuries C. E. em Essays in the Social Scientific Study of Judaism and Jewish Society, II, S. Fishbane et. al. (eds.). New York: Ktav, 1992, p. 46.
EHRMAN, Bart D. Lost Scriptures: Books that did not make it into the New Testament. New York: Oxford University Press, 2003.
_______________O Que Jesus Disse? O Que Jesus Não Disse? Quem Mudou a Bíblia e Por Quê? Rio de Janeiro: Prestígio Editorial, 2006.
ELLIOTT, J. K. The Apocryphal New Testament: A Collection of Apocryphal Christian Literature in an English Translation. Oxford: Clarendon Press, 1993.
FARROW, John. The Pageant of the Popes. New York: Sheed & Ward, 1942.
KELLY, J. N. D. Oxford Dictionary of Popes. Oxford: Oxford University Press, 1988.
KING, Karen L. O Evangelho de Maria, Introdução em A Biblioteca de Nag Hammadi, James M. Robinson (ed.). São Paulo: Madras Editora, 2007, p. 442-3.
LAMBDIN, Thomas (tr.). O Evangelho de Tomé em A Biblioteca de Nag Hammadi, James M. Robinson (Ed.). São PAULO: Madras editora, 2007, p. 116-25.
MEAD, George R. S. (tr.) Pistis Sophia. London: J. M. Watkins, 1921.
ROBINSON, James M. (ed.).  The Nag Hammadi Library in English. Leiden: E. J. Brill, 1988. Edição brasileira: A Biblioteca de Nag Hammadi. São Paulo: Madras Editora, 2007.
WILSON, R. McL e James Brashler (trs.). Evangelho de Maria em A Biblioteca de Nag Hammadi, James M. Robinson (ed.). São Paulo: Madras Editora, 2007, p. 443-4.

Fonte:

O cristianismo é uma religião de pescadores, barca e mar


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Na vida de Jesus, que para os cristãos culmina toda a história bíblica, o mar – ainda que seja o pequeno “mar da Galileia” – tem lugar relevante, quer na geografia da sua pregação quer na escolha dos primeiros discípulos, ganhando significados essenciais para o próprio cristianismo:
«Caminhando ao longo do mar da Galileia, Jesus viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André, que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores. Disse-lhes: “Vinde comigo e Eu farei de vós pescadores de homens”» (Mateus 5, 18-19). É interessante vincar que pescadores e pesca passam a caracterizar os discípulos de Jesus e a missão que lhe comete: assim como se juntam peixes na rede, assim se reunirão os homens no “Reino”.

Pouco a pouco, os discípulos foram-se admirando com o que Jesus dizia e fazia, tanto mais que desafiava tudo quanto pensavam e esperavam de Deus. Assim, muito especialmente, no respeitante às águas e ao mar:
«Jesus subiu para o barco e os discípulos seguiram-no. Levantou-se, então, no mar, uma tempestade tão violenta, que as ondas cobriam o barco; entretanto, Jesus dormia. Aproximando-se dele, os discípulos despertaram-no, dizendo-lhe: “Senhor, salva-nos, que perecemos!” Disse-lhes Ele: “Porque temeis, homens de pouca fé?” Então, levantando-se, falou imperiosamente aos ventos e ao mar, e sobreveio uma grande calma. Os homens, admirados, diziam: “Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?”» (Mateus 8, 23-27).

Depois, princípio e fim, o fim recuperando e ultrapassando o princípio, acabam por se conjugar. No último livro bíblico, o vidente vê um novo mar, límpido e celeste:
«Fui arrebatado em espírito: vi um trono no céu e sobre o trono havia alguém sentado. O que estava sentado era, no aspeto, semelhante à pedra de jaspe e de sardónica e uma auréola, de aspeto semelhante à esmeralda, rodeava o trono. (…) Diante do trono havia também uma espécie de mar de vidro, transparente como cristal.» (Apocalipse 4, 2-3.6).

Em Portugal, país inevitavelmente marinheiro, onde até de avião se «embarca», toda esta imagética se interiorizou como interpretação da história vivida e a viver.

No conjunto da sua poesia, Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) nunca abandona esta chave, feita de Bíblia, história e biografia. Assim, em “Fundo do mar”, quanto à mitologia marinha:
«No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores. (…)
Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.
Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso» (Obra Poética (OP), Alfragide, Caminho, 2010, p. 48).

Assim, em “Caminho da Índia”, quanto a quem lá foi, recriando-se na viagem, aliás exata:
«Ante o seu rosto para a história
E detém-se o exército dos ventos
Tinha o futuro por memória.
Coração atento em frente à linha lisa
Do horizonte
Vontade inteira e precisa
Exato pressentimento» (OP, p. 298).

Assim, n’“Os navegadores”, providencialmente todos:
«Eles habitam entre um mastro e o vento.
Têm as mãos brancas de sal
E os ombros vermelhos de sol.
Os espantados peixes se aproximam
Com olhos de gelatina.
O mar manda florir seus roseirais de espuma.
No oceano infinito
Estão detidos num barco
E o barco tem um destino
que os astros altos indicam» (OP, p. 354).

E tudo ganha nome, como Deus lho dera primeiro. Assim no Mundo nomeado ou descoberta das ilhas:
«Iam de cabo em cabo nomeando
Baías promontórios enseadas:
Encostas e praias surgiam
Como sendo chamadas
E as coisas mergulhadas no sem-nome
Da sua própria ausência regressadas
Uma por uma ao seu nome respondiam
Como sendo criadas» (OP, p. 450).

Porque inauguravam também a geografia. Como em “Navegações VI”:
«Navegavam sem o mapa que faziam (…)
Os homens sábios tinham concluído
Que só podia haver o já sabido:
Para a frente era só o inavegável
Sob o clamor de um sol inabitável
Indecifrada escrita de outros astros
No silêncio das zonas nebulosas
Trémula a bússola tateava espaços
Depois surgiram as costas luminosas
Silêncios e palmares frescor ardente
E o brilho do visível frente a frente» (OP, p. 676).

Mesmo que reapareça a cauda de Leviatã, em tanta desventura sofrida ou temida. Como em “Navegações XI”:
«Olhos abertos do navegador
Mudam aqui a luz a sombra a cor
E também faces e gestos se modulam
Segundo elaboradas estranhezas
Outro o recorte da vaga e do penedo
Caudas de dragões seguem os barcos» (OP, p. 691).
Mas, com tudo e além de tudo, Deus não deixa e estar e garantir, como n’ “Os navegadores”:
«O múltiplo nos enebria
O espanto nos guia
Com audácia desejo e calculado engenho
Forçámos os limites –
Porém o Deus uno
De desvios nos protege
Por isso ao longo das escalas
Cobrimos de oiro o interior sombrio das igrejas» (OP, p. 729).
E, assim sendo, aí ficaram as mil igrejas de mil sítios, com a talha dourada do agradecimento português.
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D. Manuel Clemente
Patriarca de Lisboa
Conferência na Academia de Marinha (tópicos)
18.3.2014
In Patriarcado de Lisboa