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segunda-feira, 6 de julho de 2015

Papa Francisco na América Latina

(Lusa)
Quito, 05 jul 2015 (Ecclesia) – O Papa Francisco chegou hoje ao Equador, após um voo de quase 12 horas, iniciando uma visita de nove dias à América Latina com alertas contra a exclusão e apelos em favor dos mais “vulneráveis”.
“Que as realizações alcançadas no progresso e desenvolvimento possam garantir um futuro melhor para todos, prestando especial atenção aos nossos irmãos mais frágeis e às minorias mais vulneráveis, que são a dívida que toda a América Latina continua a ter”, pediu, no primeiro discurso da viagem, no aeroporto internacional de Quito, perante autoridades civis e religiosas equatorianas, para além de representações das comunidades indígenas locais.
O primeiro Papa latino-americano da história da Igreja Católica manifestou a sua “alegria e gratidão”, “entusiasmo e esperança” ao regressar ao seu continente natal, elogiando o acolhimento equatoriano.
“Agradeço a Deus por me ter permitido voltar à América Latina e estar aqui hoje, convosco, nesta linda terra do Equador”, confessou.
Francisco recordou que no passado visitou o Equador por vários motivos e apresentou-se hoje como “testemunha da misericórdia de Deus e da fé em Jesus Cristo”.
A intervenção recordou que a fé católica “modelou a identidade” do país, gerando vários santos que “viveram a fé com intensidade e entusiasmo e, praticando a misericórdia, contribuíram para melhorar, em diferentes áreas, a sociedade equatoriana do seu tempo”.
“Hoje, também nós podemos encontrar no Evangelho as chaves que nos permitam enfrentar os desafios atuais, avaliando as diferenças, fomentando o diálogo e a participação sem exclusões”, apelou.
Francisco disse ao presidente equatoriano que pode contar com “o empenho e a colaboração da Igreja para servir” um povo “que se levantou, com dignidade”.
“Daqui quero abraçar todo o Equador: desde o cume do Chimborazo até às costas do Pacífico, desde a selva amazónica até às Ilhas Galápagos, nunca percais a capacidade de dar graças a Deus pelo que Ele fez e faz por vós”, declarou.
Já o presidente do Equador, Rafael Correa, sublinhou a diversidade do país e as visões comuns com a Igreja Católica na defesa da vida, da família e da natureza, falando do Papa como um “gigante moral” face à “injusta distribuição dos recursos”.
No final da cerimónia das boas-vindas, Francisco seguiu para a Nunciatura Apostólica de Quito (representação diplomática da Santa Sé), onde vai ficar alojado, num percurso de cerca de oito quilómetros.
Dezenas de milhares de pessoas acompanharam a deslocação, feita num carro utilitário e, depois, em papamóvel aberto.
Ver filme em: https://www.youtube.com/watch?v=29-tafcTf7U

quarta-feira, 1 de julho de 2015

O Início do Papado por um Pescador Analfabeto


Considerações iniciais


Jesus-Pescadores
Segundo o Novo Testamento, o apóstolo Pedro era um pescador analfabeto

Preparado para ser postado especialmente no Dia de São Pedro, 29/06, o estudo abaixo mostra como é curioso saber que o papado da religião com o maior número de seguidores no mundo, o Cristianismo, que apesar da grandiosidade e da riqueza, teve a origem da sua tradição num pescador analfabeto, o apóstolo Pedro. Ademais, expõe que a sua liderança, nos primeiros anos da Igreja, tornou-se uma dúvida após a descoberta de textos perdidos por muitos séculos. Alguns historiadores concluem que a ideia da liderança do apóstolo Pedro, desde o início do Cristianismo, foi uma manipulação ideológica arquitetada pela corrente dominante, que fez apagar a rivalidade com outros líderes, sobretudo Maria Madalena, e desaparecer os textos que apresentavam as ideias contrárias. Ademais, o estudo aponta o ambiente culturalmente precário da região onde surgiu o Cristianismo, bem como o posicionamento dos seus primeiros adeptos nas camadas culturais mais baixas da sociedade na época.

Parece que o primeiro papa alfabetizado, de quem se tem registro, foi Clemente I, que foi bispo em Roma de 91 a 101 e.c., sucedendo o apóstolo Pedro (morto em 64 e.c.), a Lino (68-78 e.c.) e a Anacleto (79-91 e.c.), portanto o quarto papa na sequência sucessória (Kelly, 1988: 05-8). A alfabetização de Clemente I é atestada, pois deixou documentos escritos (cartas e homilias).

O analfabetismo na Antiguidade

Grande parte do que conhecemos sobre a Antiguidade é conhecida pela literatura registrada pelos escritores daquela época. Em vista da quantidade de textos e da beleza de muitos deles, muitos leitores atuais são levados a pensar que o letramento era um fato comum e disseminado entre a população antiga.  Nada mais enganoso. Pesquisas apontam que “no mundo antigo, a maioria das pessoas não sabia ler” (…) e “que aquilo que conhecemos por letramento universal é um fenômeno moderno que só surgiu com o advento da Revolução Industrial” (…) “até o período moderno, quase todas as sociedades apresentavam apenas uma pequena minoria da população capaz de ler e escrever” (Ehrman, 2006: 47). Bart D. Ehrman continua: “Isto se aplica até mesmo às sociedades antigas que estimulavam a leitura e a escrita – por exemplo, a Roma dos primeiros séculos cristãos, ou até mesmo a Grécia do período clássico” (Ehrman, 2006: 47). Em seguida ele aponta que: “o melhor e mais influente estudo sobre o letramento nos tempos antigos, feito pelo professor da Universidade de Columbia, William Harris, indica que nos tempos e lugares mais propícios – por exemplo, Atenas à altura do período clássico do século V a.e.c. – as taxas de alfabetização raramente atingiam de 10 a 15% da população. Transpondo os números, isto significa que, nas melhores condições, de 85 a 90% da população não podia ler ou escrever. No século I cristão, na época do Império Romano, as taxas de alfabetização podem ter sido mais irrisórias ainda” (Ehrman, 2006: 47-8).  Na região de Israel, a situação era pior ainda: “… não é exagero dizer que o índice total de alfabetismo na terra de Israel naquele tempo (primeiros séculos e.c.), de judeus somente, era provavelmente de menos de 3%” (Bar-ilam, 1992: 46). Enfim, a alfabetização, e ainda bem mais a erudição, eram privilégios de muitos poucos na Antiguidade.

A precariedade cultural dos primeiros cristãos

Se o índice de analfabetismo era alto, mesmo nos períodos e nos lugares favoráveis à cultura, tal como indicados acima, imagine na região da Palestina do século I, tão distante dos grandes centros culturais da época (Atenas, Roma, Alexandria e Pérgamo, bem como mais distante ainda dos centros culturais da Índia e da China – o grande centro cultural dos persas, Persépolis, já tinha sido destruído). Aquela era uma região situada na periferia cultural do Império Romano. Quando lemos sobre pessoa erudita daquela região e época, seu saber se restringia ao conhecimento religioso, enquanto que nos grandes centros culturais já se cultivada e ensinava a erudição filosófica, científica, artística, literária, poética, teatral, política e retórica. Portanto, naquela região, o pouco de saber que existia era o equivalente exclusivo ao saber religioso, enfim, a religião era a única erudição, ou seja, só existia educação religiosa, pois esta deve ser a razão de não se ter registro da existência de algum texto (oral ou escrito), que não seja religioso, naquela época e região.

         Que o Cristianismo surgiu e se desenvolveu nos primeiros anos em comunidades formadas por cristão das classes culturais mais baixas, está confirmado em alguns dos primeiros documentos. Inicialmente era uma religião de incultos dirigida para os também incultos, até que, gradativamente, membros mais instruídos passaram a integrar suas comunidades. Uma das mais interessantes fontes que constata o baixo nível cultural dos primeiros cristãos é a obra Contra Celso (Adversus Celsus), do final do século II e.c., de autoria de Orígenes, um dos mais importantes teólogos dos primeiros séculos. Nela Orígenes contesta as críticas de Celso ao Cristianismo, numa obra perdida denominada A Palavra Verdadeira. “Uma das imputações era que os cristãos são pessoas ignorantes, de baixa extração. O que é impressionante é que, em sua réplica, Orígenes não nega isso” (Ehrman, 2006: 51). Veja as indicações da precariedade cultural dos cristãos por Celso: “Eis a palavra de ordem deles (os cristãos): para trás quem tem cultura, quem tem sabedoria, quem tem discernimento. (…) Mas se tiver algum ignorante, insensato, inculto, uma criança, que se aproxime com coragem” (Contra Celso, 3.44 – Ehrman, 2006: 51). Estes últimos eram os alvos preferidos dos cristãos para a conversão. Em seguida, ele prossegue dizendo que os cristãos “jamais se aproximam de uma assembleia de homens prudentes com a audácia de nela revelar seus mistérios. Mas, logo que percebem a presença de adolescentes, de um bando de escravos, de um ajuntamento de idiotas, para lá correm a se exibir” (Contra Celso, 3.50 – Ehrman, 2006: 51). Mais adiante aponta os ofícios braçais exercidos pelos cristãos: “cardadores, sapateiros, pisoeiros”, ou seja: “pessoas das mais incultas e rudes”. E o silêncio dos cristãos diante de pessoas cultas: “Diante de mestres cheios de experiência e discernimento não ousam abrir a boca. Mas é só surpreenderem seus filhos acompanhados de mulheres incultas e idiotas, que começam a falar coisas estranhas sem consideração com o pai ou com os preceptores… os outros não passam de impertinentes estúpidos. Eis aí com que palavras os persuadem” (Contra Celso, 3.55 – Ehrman, 2006: 51). Sobre esta passagem, Orígenes contesta que os cristãos “são sábios, mas são sábios no que refere a deus, não no que refere às coisas do mundo. Em outros termos, ele não nega que a comunidade cristã seja amplamente constituída de classes de baixa extração, pouco instruídas” (Ehman, 2006: 51). Concluindo, a única cultura existente naquela época e naquela região, afastada dos centros culturais, era a cultura religiosa, de modo que somente os religiosos eram cultos. Bem, como diz um ditado popular: “numa terra de cegos, quem tem apenas um olho é rei”, podemos imaginar como deveria ser o deslumbramento dos analfabetos e dos cristãos incultos diante dos poucos religiosos letrados da época.

            Outro exemplo da precariedade cultural dos primeiros cristãos está num texto cristão do século II e.c., o Pastor de Hermas, num episódio quando Hermas afirma não se recordar de todo um livro que lhe foi ditado, então ele pede para fazer uma cópia manuscrita: “Eu o tomei (o livro) e fui para outra parte do campo, onde copiei todo o conjunto, letra por letra, mesmo não sabendo distinguir as sílabas. E, no final, quando completei as letras do livro, ele foi…” (Pastor de Hermas, 5.4 – Ehrman, 2006: 58). Este texto foi muito estimado nos primeiros anos do Cristianismo, tanto que chegou a fazer parte do Novo Testamento em alguns dos primeiros códices cristãos (Ehrman, 2006: 57). O analfabetismo de Hermas é explícito: “copiei todo o conjunto, letra por letra, mesmo não sabendo distinguir as sílabas”, e representa a mais clara menção ao analfabetismo dos primeiros cristãos. Em vista desta precariedade, Bart D. Ehrman afirma que as transcrições dos primeiros manuscritos, por copistas cristãos, estão repletas de erros. Orígenes observou esta deficiência: “As diferenças entre os manuscritos se tornaram gritantes, ou pela negligência de alguns copistas ou pela audácia perversa de outros…” (Contra Celso, 2.27 – Ehrman, 2006: 62). Para solucionar isto, algumas primeiras comunidades cristãs contratavam copistas profissionais para copiarem seus manuscritos, até que copistas cristãos educados e bem treinados gradualmente ingressaram na Igreja. Em suma, estes são exemplos do primitivo ambiente cultural, no qual o Cristianismo surgiu, e da precariedade intelectual dos primeiros adeptos cristãos.

Mais um exemplo da ignorância dos primeiros compositores de textos cristãos, agora num texto apócrifo, aparece no trecho final do Evangelho de Pedro, quando este apóstolo estando em Jerusalém afirma: “Eu, Simão Pedro, de minha parte, e André, meu irmão, pegamos nossas redes e dirigimo-nos ao mar, indo em nossa companhia Levi, filho de Alfeu, quem o senhor…” (XIV.60 – Elliott, 1993: 158 e Ehrman, 2003: 34). A ignorância geográfica do autor deste evangelho é absurda, uma vez que Jerusalém não é banhada pelo mar, portanto não existe razão para a presença de redes de pesca naquela cidade.

A disputa pela liderança entre o apóstolo Pedro e Maria Madalena

Pedro (morto em 64 e.c.) foi considerado pela Igreja como o príncipe dos apóstolos e o primeiro papa. Seu nome original era Simon, português Simão, depois recebeu o nome (talvez apelido) de Pedro (latim: Petrus), que é a forma masculinizada do substantivo feminino em latim petra (pedra), do aramaico cephas e do grego petros. Foi um dos primeiros seguidores de Jesus e lhe foi concedido o papel de líder e de porta-voz dos apóstolos conforme o Novo Testamento. Estava presente nos principais eventos na vida de Jesus segundo os Evangelhos Canônicos (Kelly, 1998: 05). Tanto o evangelho canônico de Mateus (4.18) como o apócrifo Evangelho de Pedro (XIV.60) concordam que ele era um pescador. Uma vez que seus atos são bem conhecidos dos leitores da Bíblia, não é necessária a repetição aqui.

            Curiosamente, a literatura apócrifa de Pedro, recuperada até hoje, é bem mais numerosa que a canônica. Se reunidos os textos mais completos e os fragmentos, existem os seguintes documentos:

a) Ministério:
– O Evangelho de Pedro (Elliott, 1993: 150-8 e Ehrman, 2003: 31-4)
– A Pregação de Pedro – Kerigma Petrou (Elliott, 1993: 20-3 e Ehrman, 2003: 236-8)
b) Atos:
– Os Atos de Pedro (Elliott, 1993: 390-426 e Ehrman, 2003: 135-54)
– Os Atos de Pedro e dos Doze Apóstolos (Robinson, 2007: 248-54)
c) Apocalipse:
– O Apocalipse de Pedro (Elliot, 1993: 593-612 e Ehrman, 2003: 280-7)
– O Apocalipse Copta de Pedro (Ehrman, 2003: 78-81 e Robinson, 2007: 319-24)
d) Epistolas:
– A Carta de Pedro a Felipe (Ehrman, 2003: 195-200 e Robinson, 2007: 367-72)
– A Carta de Pedro a Tiago e sua Recepção (Ehrman, 2003: 191-4)
– e A Epistula Petri (Elliott, 1993: 433-9).

            Agora, o que precisa ser informado e também discutido é que a aceitação da liderança de Pedro não era uma unanimidade nos primeiros anos do Cristianismo, tal como transmite o Novo Testamento e os relatos dos primeiros padres, conservados pela Igreja Católica. Após a descoberta dos manuscritos de Nag Hammadi, sobretudo a do Evangelho de Maria Madalena, os historiadores foram obrigados a repensar a posição de Pedro, tanto no tempo do ministério de Jesus, como também nos primeiros anos do Cristianismo (D’Angelo, 1999: 105-6). Maria Madalena é altamente estimada nos textos gnósticos, nalgumas passagens chega a aparecer como uma discípula predileta de Jesus, a qual recebia ensinamentos secretos que eram ocultados dos outros apóstolos. O Evangelho de Maria Madalena diz: “Maria disse: O que a vós está oculto eu vos proclamarei” (Ehrman, 2003: 36 e Wilson, 2007: 443). Ela é elogiada em alguns trechos: “Pedro disse a Maria: irmã, nós sabemos que o Salvador amava a ti mais que todas as mulheres” (Evangelho de Maria – Ehrman, 2003: 36 e Wilson, 2007: 443) e numa passagem do Pistis Sophia dos gnósticos: “Jesus, o compassivo, respondeu e disse à Maria: Maria, tu és abençoada, a quem eu ensinarei todos os mistérios das alturas (…) tu, cujo coração está elevado ao reino do céu mais que de teus irmãos” (Mead, 1921: 20).

Ela participa ativamente em alguns diálogos, deixando até transparecer um papel de liderança. Em razão disto, seu relacionamento com Pedro não parecia ser muito amistoso. Nas palavras de Karen L. King: “O confronto de Maria e Pedro, uma sequência também encontrada em O Evangelho de Tomé, Pistis Sophia e O Evangelho dos Egípcios, reflete algumas tensões do Cristianismo do século II. Pedro e André representam as posições ortodoxas que negam a validade da revelação esotérica e rejeita a autoridade da mulher no ensinamento. O Evangelho de Maria ataca ambas as posições de frente por meio da figura de Maria Madalena. Ela é a amada do Salvador, possuidora do conhecimento e do ensinamento superior àquelas da tradição apostólica pública” (King, 2007: 442).  Veja como Pedro discrimina Maria no Evangelho de Tomé: “Simão Pedro disse a ele (Jesus): Permite que Maria nos deixe, pois as mulheres não são dignas da vida”. Então a estranha resposta de Jesus: “Jesus disse: eu mesmo devo guiá-la para fazer dela um homem, para que ela possa se tornar um espírito vivo semelhante a vós homens. Pois, cada mulher que fizer dela mesma um homem, entrará no reino do céu” (Ehrman, 2003: 28 e Lambdin, 2007: 125). O diálogo se transforma em discussão hostil no Evangelho de Maria, quando Maria fala de alguns ensinamentos secretos que recebeu de Jesus. Ao terminar seu discurso, André a contesta com as seguintes palavras: “Eu pelo menos não acredito que o Salvador disse isto. Pois, certamente, esses ensinamentos são ideias estranhas”. Pedro então entra na coversa e questiona: “Ele (Jesus) realmente falou com uma mulher sem o nosso conhecimento e não abertamente conosco? Vamos todos mudar de posição e ouvi-la? Ele preferiu a ela a nós?” Então Maria responde a Pedro: “Meu irmão Pedro, o que pensas? Tu crês que eu mesma inventei estas coisas no meu coração, ou que estava mentindo sobre o Salvador?” Em seguida Levi entra na conversa e acalma o clima (Ehrman, 2003: 37 e Wilson, 2007: 444).

O analfabetismo do apóstolo Pedro

A clara referencia ao analfabetismo do apóstolo Pedro aparece em Atos dos Apóstolos 4.13: “Vendo eles a coragem de Pedro e de João, e considerando que eram homens sem instrução e idiotas, admiravam-se”. No original grego consultado, a expressão traduzida como “sem instrução” é agrammatoi, que Jerônimo na Vulgata traduziu para o Latim como sine litteris e a palavra “idiotas” no Grego é idiotai e no Latim idiotae. A tradução desta última palavra é especialmente curiosa nas Bíblias, uma vez que os tradutores e os editores procuram encobrir a carga pejorativa do seu significado etimológico (idiotai), utilizando de um artifício eufemístico, traduzindo-a então por outra palavra de menor carga humilhante (ex: sem estudos, sem conhecimentos, sem instrução, etc.), mas nunca como ‘idiotas’ ou ‘analfabetos’.

Uma discutida menção do analfabetismo de Pedro aparece na saudação final de sua Primeira Epístola, 5.12: “Por meio de Silvano, que estimo como um irmão fiel, vos escrevi resumidamente…”.  Intérpretes discutem se na frase “por meio de Silvano” (Grego: dia siluanou e Latim: per silvanum) o sentido é de que a carta foi escrita por Pedro e apenas enviada por Silvano, ou mesmo, escrita por outro escriba e enviada por Silvano ou, também, foi ditada por Pedro e redigida por Silvano. Para aqueles que levam em conta a passagem, na qual ele é mencionado como analfabeto nos Atos dos Apóstolos (4.13), as duas últimas hipóteses são as mais plausíveis. Para os que não acreditam que Pedro era analfabeto, o fundamento é a expressão “escrevi” (Grego: egrafa e Latim: scripsi), a qual é entendida referir-se à redação do próprio Pedro. Acontece que, segundo os historiadores, na Antiguidade, uma vez que o número de analfabetos era grande, era comum contratar o trabalho de redação de escribas que, quando estes últimos redigiam as cartas ou comunicados, escreviam como que se as cartas fossem escritas pelas pessoas que a ditavam, ou seja, os remetentes. De modo que, assim, parecia que quem tinha escrito a carta era a pessoa analfabeta, a qual, na verdade, tinha apenas ditado a carta para o escriba redigir. Agora, a passagem em Atos dos Apóstolos 4.13 é muito explícita quanto ao analfabetismo de Pedro, somada ao fato de ser um pescador, bem como aos altos índices de analfabetismo da Antiguidade, maior ainda naquela região afastada dos grandes centos culturais, são mais favoráveis à conclusão de que Pedro era analfabeto e que, certamente, teve de ditar a carta para a redação de Silvano.

Obras consultadas

D’ANGELO, Mary Rose. The Case of Mary Magdalene em Women & Christian Origins. New York/Oxford: Oxford University Press, 1999, 105-28.
DONALDSON, James and Alexander Roberts (eds.). Early Church Fathers – Ante-Nicene Fathers, vols. I, II, III e IV. Edinburg: T&T Clark, 1885, reprint Grand Rapids: Wm. B. Eerdman Publishing Company.
BAR-ILAM, Meir. Illiteracy in the Land of Israel in the First Centuries C. E. em Essays in the Social Scientific Study of Judaism and Jewish Society, II, S. Fishbane et. al. (eds.). New York: Ktav, 1992, p. 46.
EHRMAN, Bart D. Lost Scriptures: Books that did not make it into the New Testament. New York: Oxford University Press, 2003.
_______________O Que Jesus Disse? O Que Jesus Não Disse? Quem Mudou a Bíblia e Por Quê? Rio de Janeiro: Prestígio Editorial, 2006.
ELLIOTT, J. K. The Apocryphal New Testament: A Collection of Apocryphal Christian Literature in an English Translation. Oxford: Clarendon Press, 1993.
FARROW, John. The Pageant of the Popes. New York: Sheed & Ward, 1942.
KELLY, J. N. D. Oxford Dictionary of Popes. Oxford: Oxford University Press, 1988.
KING, Karen L. O Evangelho de Maria, Introdução em A Biblioteca de Nag Hammadi, James M. Robinson (ed.). São Paulo: Madras Editora, 2007, p. 442-3.
LAMBDIN, Thomas (tr.). O Evangelho de Tomé em A Biblioteca de Nag Hammadi, James M. Robinson (Ed.). São PAULO: Madras editora, 2007, p. 116-25.
MEAD, George R. S. (tr.) Pistis Sophia. London: J. M. Watkins, 1921.
ROBINSON, James M. (ed.).  The Nag Hammadi Library in English. Leiden: E. J. Brill, 1988. Edição brasileira: A Biblioteca de Nag Hammadi. São Paulo: Madras Editora, 2007.
WILSON, R. McL e James Brashler (trs.). Evangelho de Maria em A Biblioteca de Nag Hammadi, James M. Robinson (ed.). São Paulo: Madras Editora, 2007, p. 443-4.

Fonte:

O cristianismo é uma religião de pescadores, barca e mar


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Na vida de Jesus, que para os cristãos culmina toda a história bíblica, o mar – ainda que seja o pequeno “mar da Galileia” – tem lugar relevante, quer na geografia da sua pregação quer na escolha dos primeiros discípulos, ganhando significados essenciais para o próprio cristianismo:
«Caminhando ao longo do mar da Galileia, Jesus viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André, que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores. Disse-lhes: “Vinde comigo e Eu farei de vós pescadores de homens”» (Mateus 5, 18-19). É interessante vincar que pescadores e pesca passam a caracterizar os discípulos de Jesus e a missão que lhe comete: assim como se juntam peixes na rede, assim se reunirão os homens no “Reino”.

Pouco a pouco, os discípulos foram-se admirando com o que Jesus dizia e fazia, tanto mais que desafiava tudo quanto pensavam e esperavam de Deus. Assim, muito especialmente, no respeitante às águas e ao mar:
«Jesus subiu para o barco e os discípulos seguiram-no. Levantou-se, então, no mar, uma tempestade tão violenta, que as ondas cobriam o barco; entretanto, Jesus dormia. Aproximando-se dele, os discípulos despertaram-no, dizendo-lhe: “Senhor, salva-nos, que perecemos!” Disse-lhes Ele: “Porque temeis, homens de pouca fé?” Então, levantando-se, falou imperiosamente aos ventos e ao mar, e sobreveio uma grande calma. Os homens, admirados, diziam: “Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?”» (Mateus 8, 23-27).

Depois, princípio e fim, o fim recuperando e ultrapassando o princípio, acabam por se conjugar. No último livro bíblico, o vidente vê um novo mar, límpido e celeste:
«Fui arrebatado em espírito: vi um trono no céu e sobre o trono havia alguém sentado. O que estava sentado era, no aspeto, semelhante à pedra de jaspe e de sardónica e uma auréola, de aspeto semelhante à esmeralda, rodeava o trono. (…) Diante do trono havia também uma espécie de mar de vidro, transparente como cristal.» (Apocalipse 4, 2-3.6).

Em Portugal, país inevitavelmente marinheiro, onde até de avião se «embarca», toda esta imagética se interiorizou como interpretação da história vivida e a viver.

No conjunto da sua poesia, Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) nunca abandona esta chave, feita de Bíblia, história e biografia. Assim, em “Fundo do mar”, quanto à mitologia marinha:
«No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores. (…)
Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.
Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso» (Obra Poética (OP), Alfragide, Caminho, 2010, p. 48).

Assim, em “Caminho da Índia”, quanto a quem lá foi, recriando-se na viagem, aliás exata:
«Ante o seu rosto para a história
E detém-se o exército dos ventos
Tinha o futuro por memória.
Coração atento em frente à linha lisa
Do horizonte
Vontade inteira e precisa
Exato pressentimento» (OP, p. 298).

Assim, n’“Os navegadores”, providencialmente todos:
«Eles habitam entre um mastro e o vento.
Têm as mãos brancas de sal
E os ombros vermelhos de sol.
Os espantados peixes se aproximam
Com olhos de gelatina.
O mar manda florir seus roseirais de espuma.
No oceano infinito
Estão detidos num barco
E o barco tem um destino
que os astros altos indicam» (OP, p. 354).

E tudo ganha nome, como Deus lho dera primeiro. Assim no Mundo nomeado ou descoberta das ilhas:
«Iam de cabo em cabo nomeando
Baías promontórios enseadas:
Encostas e praias surgiam
Como sendo chamadas
E as coisas mergulhadas no sem-nome
Da sua própria ausência regressadas
Uma por uma ao seu nome respondiam
Como sendo criadas» (OP, p. 450).

Porque inauguravam também a geografia. Como em “Navegações VI”:
«Navegavam sem o mapa que faziam (…)
Os homens sábios tinham concluído
Que só podia haver o já sabido:
Para a frente era só o inavegável
Sob o clamor de um sol inabitável
Indecifrada escrita de outros astros
No silêncio das zonas nebulosas
Trémula a bússola tateava espaços
Depois surgiram as costas luminosas
Silêncios e palmares frescor ardente
E o brilho do visível frente a frente» (OP, p. 676).

Mesmo que reapareça a cauda de Leviatã, em tanta desventura sofrida ou temida. Como em “Navegações XI”:
«Olhos abertos do navegador
Mudam aqui a luz a sombra a cor
E também faces e gestos se modulam
Segundo elaboradas estranhezas
Outro o recorte da vaga e do penedo
Caudas de dragões seguem os barcos» (OP, p. 691).
Mas, com tudo e além de tudo, Deus não deixa e estar e garantir, como n’ “Os navegadores”:
«O múltiplo nos enebria
O espanto nos guia
Com audácia desejo e calculado engenho
Forçámos os limites –
Porém o Deus uno
De desvios nos protege
Por isso ao longo das escalas
Cobrimos de oiro o interior sombrio das igrejas» (OP, p. 729).
E, assim sendo, aí ficaram as mil igrejas de mil sítios, com a talha dourada do agradecimento português.
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D. Manuel Clemente
Patriarca de Lisboa
Conferência na Academia de Marinha (tópicos)
18.3.2014
In Patriarcado de Lisboa