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terça-feira, 28 de outubro de 2014

O desenvolvimento humano entre Bergoglio, Ratzinger e Aristóteles

Falando na inauguração do Global Gateway da Universidade de Notre Dame, o cardeal Parolin faz uma reflexão sobre a doutrina social da Igreja


A palavra "desenvolvimento" é a chave para o entendimento da doutrina social da Igreja e "os problemas mais profundos para o desenvolvimento humano integral podem ser encontrados em uma visão distorcida do homem e da actividade económica, que ameaça a dignidade da pessoa humana".
Assim se expressou no sábado passado o Secretário de Estado Vaticano, monsenhor Pietro Parolin, durante a conferência Dignidade Humana e Desenvolvimento Humano, no contexto da inauguração da Global Gateway na Universidade de Notre Dame.
O cardeal tomou como ponto de partida a Evangelii Gaudium do Papa Francisco, depois citando depois Bento XVI e até Aristóteles.
Em sua exortação apostólica, Bergoglio recorda a oposição da Igreja "para uma economia da exclusão e da iniquidade". O Santo Padre denuncia a existência de "grandes massas populacionais” que “se vêem excluídas e marginalizadas: sem emprego, sem perspectivas, sem saída". É uma consequência do que ele mesmo chama de "globalização da indiferença".
Não é objetivo da Evangelii Gaudium apoiar um sistema eEconómicoem detrimento de outra: a exortação apostólica tem "um propósito muito mais profundo e de longo alcance, que é o de mover as consciências para promover uma renovada atenção ao homem, que não pode ser reduzido a um agente do mercado, a meio de produção ou consumidor, ou a ambos", disse Parolin.
Reavaliando a dignidade do ser humano, só pode ser determinada também uma “reformulação dos fundamentos do pensamento eEconómico, bem como a chave para entender a relação adequada entre o "desenvolvimento humano e a dignidade humana."
Tanto Francisco quanto Bento XVI (na Caritas in Veritate) insistem na "gratuitidade" como "componente indispensável para a construção e a coesão da vida social”. Se o homem é reduzido a mero “agente e económico acaba se “descartando a verdadeira identidade social de cada um”, portanto, descartar aqueles que não são “úteis materialmente”.
Esta é uma "visão materialista do homem e da sociedade", que é "resultado de um certo pensamento fechado à transcendência, desenvolvido, cada vez mais fortemente, ao longo dos últimos três séculos, com efeitos importantes sobre o pensamento e económico"
Enquanto isso o Papa Francisco, em consonância com a doutrina social da Igreja, que por sua vez baseia-se em Aristóteles, considera a economia na categoria de "técnicas científicas e práticas" que deve ser subordinada “à política e à moral” e que deve ser colocada sob a orientação das "virtudes da justiça e da prudência", a cultura dominante a considera uma "ciência fenomenológica, similar às ciências físico-matemáticas", com o o objectivo principal da "maximização da utilização dos recursos".
O próprio Aristóteles identificava uma "tentação multissecular que leva a “converter todas as faculdades humanas e todas as actividades em meios de produzir dinheiro”. Uma tendência que o Papa Francisco confirma e encontra confirmação na tendência actual de aceitar "pacificamente" a predominância do dinheiro "sobre nós e nas nossas sociedades” (EG 55).
Se queremos que o serviço da economia seja eficaz para o homem “não pode faltar uma visão integral do homem e da sociedade, nem um confronto constante com a realidade com a qual se deseja operar. Só então a ciência e económicapode ser fiel à sua essência de ciência prática e moral”, disse o cardeal Parolin.
Caso contrário, a economia torna-se um "instrumento da ditadura do relativismo e do apriorismo", como já entendido por Bento XVI, quando, na Caritas in Veritate, destacou o perigo de uma "tecnocracia erradicada por uma compreensão transcendente da natureza humana".
Para orientar toda a actividade económica para o "desenvolvimento humano integral", portanto, deve haver uma "conversão da mente e do coração", substituindo a "fé Prometeica no mercado ou em outras ideologias e visões apriorísticas alternativas  contrárias, pela fé em Deus e por uma visão transcendente do homem, Filho de Deus ", concluiu o secretário de Estado. 

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Papa pede abolição da pena de morte e melhoria das condições carcerárias

Cidade do Vaticano (RV) - Cristãos e homens de boa vontade "são chamados hoje a lutar não somente pela abolição da pena de morte", em "todas as suas formas", mas também pela melhoria das "condições carcerárias".



Essa é uma das passagens centrais do discurso do Papa Francisco nesta quinta-feira, no Vaticano, a um grupo de juristas da Associação Internacional de Direito Penal. A voz do Papa elevou-se também contra o fenômeno do tráfico de pessoas e a corrupção. Toda aplicação da pena, afirmou, deve ser feita de modo gradual, sempre inspirada no respeito à dignidade humana.
A prisão perpétua é uma "pena de morte dissimulada", por isso fiz com que ela fosse eliminada do Código Penal Vaticano. A afirmação espontânea (fora do texto), feita pelo Papa Francisco, se insere num intenso, minucioso e atento exame sobre como os Estados tendem hoje a fazer respeitar a justiça e a impor as penas.
O Papa falou com a sua habitual clareza e franqueza e não poupou críticas aos nossos tempos em que, afirmou, a política e a mídia muitas vezes incitam "à violência e à vingança pública e privada", sempre em busca de um bode expiatório.
A passagem sobre a pena de morte foi bastante veemente. O Pontífice recordou que "São João Paulo II condenou a pena de morte", como também faz o Catecismo, e criticou não somente o recurso à pena capital, mas desmascarou, num certo sentido, também o recurso às "chamadas execuções extrajudiciais ou extralegais", chamando-as "homicídios deliberados", cometidos por agentes oficiais sob o pára-vento do Estado:
"Todos os cristãos e homens de boa vontade são, portanto, chamados hoje a lutar não somente pela abolição da pena de morte, legal ou ilegal que seja, e em todas as suas formas, mas também pela melhoria das condições carcerárias, no respeito à dignidade humana das pessoas privadas da liberdade. E uno isso também à prisão perpétua. No Vaticano, pouco tempo atrás, no Código Penal do Vaticano, não há mais a prisão perpétua. Ela é uma pena de morte dissimulada."
O olhar e a piedade de Francisco são evidentes em toda a sua explanação, tanto sobre as formas de criminalidade que atentam à dignidade humana, quanto sobre o sistema punitivo legal que por vezes – o disse sem rodeios – na sua aplicação não é legal, porque não respeita aquela dignidade.
"Nas últimas décadas – ressaltou no início o Santo Padre – difundiu-se a convicção de que através da pena pública podem ser resolvidos os mais variados problemas sociais, como se para as diferentes enfermidades fosse recomendado o mesmo medicamento."
Isso fez de modo que o sistema penal ultrapassasse seus confins – aqueles sancionadores – para estender-se ao "terreno das liberdades e dos direitos das pessoas", mas sem uma eficácia realmente constatável:
"Há o risco de não conservar nem mesmo a proporcionalidade das penas, que historicamente reflete a escala de valores tutelados pelo Estado. Enfraqueceu-se a concepção do direito penal como ultima ratio, como último recurso à sanção, limitado aos fatos mais graves contra os interesses individuais e coletivos mais dignos de proteção. Enfraqueceu-se também o debate sobre a substituição do cárcere com outras sanções penais alternativas.
O Papa Francisco definiu, por exemplo, o recurso à prisão preventiva uma "forma contemporânea de pena ilícita oculta", selada por um "verniz de legalidade", no momento em que produz a um detento não-condenado uma "antecipação da pena" de forma abusiva. Disso – observou – deriva quer o risco de multiplicar a quantidade dos "reclusos sem julgamento", ou seja, "condenados sem que sejam respeitadas as regras do processo" – e em alguns países são 50% do total –, quer, num efeito dominó, o drama das condições de vida nos cárceres:
"As deploráveis condições de detenção que se verificam em várias partes do planeta constituem muitas vezes um autêntico traço desumano e degradante, muitas vezes produto das deficiências do sistema penal, outras vezes, da carência de infra-estruturas e de planejamento, enquanto em muitos casos são nada mais que o resultado do exercício arbitrário e impiedoso do poder sobre pessoas privadas da liberdade."
O Papa Francisco foi além, quando, falando de "medidas e penas cruéis, desumanas e degradantes", comparou a detenção praticada nos cárceres de segurança máxima a uma "forma de tortura". O isolamento destes lugares, ressaltou, causa sofrimentos "psíquicos e físicos" que resultam por incrementar "sensivelmente a tendência ao suicídio". Hoje em dia – foi a desoladora constatação do Papa – as torturas não são praticadas somente como meio para obter "a confissão ou a delação"...
"...mas constituem um autêntico plus de dor que se acrescenta aos males próprios da detenção. Desse modo, se tortura não somente em centros clandestinos de detenção ou em modernos campos de concentração, mas também nos cárceres, institutos para menores, hospitais psiquiátricos, comissariados e outros centros e instituições de detenção e pena."
As crianças, sobretudo, devem ser poupadas da dureza do cárcere, bem como – se não totalmente, ao menos de forma limitada – anciãos, doentes, mulheres grávidas, portadores de deficiência, inclusive "mães e pais que – ressaltou – sejam os únicos responsáveis por menores ou portadores de deficiência".
O Pontífice deteve-se com algumas considerações sobre um fenômeno por ele sempre combatido: o tráfico de pessoas, disse, é filho daquela "pobreza absoluta" que aflige "um bilhão de pessoas" e obriga ao menos 45 milhões de seres humanos à fuga por causa de conflitos em andamento.
Dito isso, de forma premente, o Papa Francisco observou:
"A partir do momento em que não é possível cometer um delito tão complexo como o tráfico de pessoas sem a cumplicidade, com ação ou omissão, dos Estados, é evidente que, quando os esforços para prevenir e combater este fenômeno não são suficientes, deparamo-nos novamente diante de um crime contra a humanidade. Mais ainda, se ocorre que quem é preposto a proteger as pessoas e assegurar a sua liberdade, ao invés, se torna cúmplice daqueles que praticam o comércio de seres humanos, então, em tais casos, os Estados são responsáveis diante de seus cidadãos e diante da comunidade internacional."
A parte dedicada à corrupção é ampla e analisada com meticulosidade. Segundo o Papa, o corrupto é uma pessoa que através de "atalhos do oportunismo" chega a crer-se "um vencedor" que insulta e, se pode, persegue com total "despudor" quem o contradiz. "A corrupção – afirmou o Santo Padre – é um mal maior que o pecado" que "mais que perdoado", "deve ser curado":
"A sanção penal é seletiva. É como uma rede que captura somente os peixes pequenos, enquanto deixa os grandes livres no mar. As formas de corrupção que precisam ser perseguidas com (a) maior severidade são as que causam graves danos sociais, seja em matéria econômica e social – como, por exemplo, graves fraudes contra a administração pública ou o exercício desleal da administração –, seja em qualquer espécie de obstáculo interposto ao funcionamento da justiça com a intenção de obter a impunidade para os malfeitos próprios ou de terceiros."
Por fim, o Papa Francisco exortou os penalistas a usarem o critério da "cautela" na aplicação da pena". Esse, asseverou, "deve ser o princípio que rege os sistemas penais":
"O respeito à dignidade humana deve constituir não somente um limite à arbitrariedade aos excessos dos agentes do Estado, mas um critério de orientação para a perseguição e repressão daquelas condutas que representam os mais graves ataques à dignidade e integridade da pessoa humana." (RL)

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Sínodo da família, dia 6: pastoral para as famílias

O cardeal Erdö apresenta a relatio post disceptationem, que sintetiza a participação dos 180 membros do sínodo na primeira semana de trabalho


Fazer opções pastorais valentes: os 180 cardeais, bispos, auditores e especialistas do sínodo extraordinário sobre a família estão de acordo com este ponto. E a "relatio post disceptationem", lida nesta segunda-feira pelo cardeal Peter Erdö, relator geral, reafirma a fidelidade da Igreja ao evangelho, mas sem que falte uma atenção particular às fragilidades familiares.
Ao chegar a esta fase, o sínodo se concentra na misericórdia e na urgência atual de novos caminhos pastorais, porque as dificuldades das famílias "têm sido mais 'sofridas' do que escolhidas em plena liberdade".
O debate ainda está em processo: a relatio é uma síntese das discussões das congregações gerais na primeira semana do encontro. O cardeal Erdö deu a entender que, para as decisões mais concretas, é necessário esperar até o dia 19 de Outubro depois das discussões dos “circuli minores”, ou círculos menores, que começaram na sexta-feira à tarde e continuarão durante toda esta semana. Portanto, não se pode esperar um retumbante "sim" ou "não" à possibilidade de acesso aos sacramentos para pessoas em situações anómalas, como a dos divorciados recasados.
“Não é sábio pensar em soluções únicas ou inspiradas na lógica do tudo ou nada”, disse Erdö. Sobre este assunto, existem duas linhas: “Alguns argumentaram a favor da disciplina atual, em virtude do seu fundamento teológico; outros se expressaram em prol de uma abertura maior às condições particulares, às situações que não podem ser desfeitas sem que se determinem novas injustiças e sofrimentos”.
A “novidade” é uma proposta, feita por alguns, de que "o eventual acesso aos sacramentos seja precedido de um caminho penitencial, sob a responsabilidade do bispo diocesano, e com um compromisso claro em favor dos filhos". Para Erdö, seria uma possibilidade não generalizada, fruto de um discernimento caso a caso, feito gradualmente, distinguindo-se entre o estado de pecado, o estado de graça e as circunstâncias atenuantes.
Os critérios dos padres sinodais para trabalhar estas questões delicadas são três: escuta, olhar fixo em Cristo e discernimento "à luz do Senhor Jesus". A Igreja, "casa paterna" e "tocha em meio às pessoas", tem o trabalho de acompanhar com paciência, delicadeza, atenção e cuidado os seus filhos mais frágeis, "marcados pelo amor ferido e perdido".
Reconhece-se assim a necessidade de "uma palavra de esperança e de sentido" para estas pessoas, acolhendo-as com a sua existência concreta, sabendo-se "sustentar a busca, alentar o desejo de Deus e a vontade de fazer parte da Igreja plenamente, inclusive por parte de quem experimentou o fracasso ou está nas situações mais desesperadas".
Nesta linha, pede-se um discernimento espiritual "sobre as convivências, os casamentos civis e os divorciados recasados", porque "compete à Igreja reconhecer estas ‘sementes do Verbo’ dispersas para além dos seus confins visíveis e sacramentais".
"A Igreja se volta com respeito àqueles que participam da sua vida de modo incompleto e imperfeito, apreciando mais os valores positivos que eles guardam do que os seus limites e faltas".
Além de "curar as feridas" dos divorciados recasados, a Igreja é chamada também a acolher as pessoas homossexuais que "têm dons e qualidades para oferecer à comunidade cristã". A questão homossexual "nos interpela a uma reflexão séria sobre como elaborar caminhos realistas de crescimento afetivo e de maturidade humana e evangélica, integrando a dimensão sexual". Não fica nenhuma dúvida no ar quanto ao fato de que "as uniões entre pessoas do mesmo sexo não podem ser equiparadas ao matrimónio entre um homem e uma mulher". Também "não é aceitável que se queiram exercer pressões sobre a atitude dos pastores ou que organismos internacionais condicionem ajudas financeiras à adoção de normas inspiradas pela ideologia de género". A Igreja, afirma a relatio, presta atenção especial às crianças que vivem com casais do mesmo sexo, reiterando que, em primeiro lugar, devem estar sempre as exigências e os direitos dos pequenos.
E pensando sempre nos pequenos, os padres sinodais invocam no documento o "respeito e amor" por cada família ferida, em especial por quem sofreu injustamente o abandono do cônjuge, evitando "atitudes discriminatórias" para com as crianças. "É indispensável encarar de maneira leal e construtiva as consequências da separação e do divórcio; os filhos não podem se tornar 'objetos' de briga; devem-se buscar as melhores formas para que eles possam superar o trauma da divisão familiar e crescer do modo mais sereno possível".
Os participantes do sínodo enfatizam a necessidade de uma "preparação adequada para o matrimónio cristão", que não é só "uma tradição cultural ou uma exigência social", mas "uma decisão vocacional". Não deve haver uma "complicação" dos ciclos de formação, mas um "aprofundamento", indo-se além de orientações gerais. Neste sentido, deve-se renovar também "a formação dos presbíteros" através de um envolvimento maior das famílias, "privilegiando o seu testemunho". Do mesmo modo, os casais devem ser acompanhados mesmo depois da celebração do matrimónio: um período "vital e delicado", cheio de alegrias, mas também de desafios que a Igreja deve ajudar os cônjuges a enfrentar.
Abordou-se também a simplificação dos procedimentos de reconhecimento da nulidade matrimonial. Entre as propostas, foram apontadas a superação da necessidade da dupla sentença de conformidade, a possibilidade de se determinar uma via administrativa sob a responsabilidade do bispo diocesano e um processo sumário a se realizar nos casos de nulidade notória. Também foi proposta a possibilidade de se dar relevância à fé dos noivos na avaliação da validade ou não do sacramento do matrimónio. Deve-se destacar que, em todos os casos, a questão é estabelecer a verdade sobre a validade do vínculo. Também se pede o aumento da responsabilidade do bispo diocesano, que, na sua diocese, poderia nomear um sacerdote devidamente preparado para aconselhar gratuitamente as partes sobre a validade do matrimónio.
Quanto aos leigos, o sínodo incentiva o seu compromisso no âmbito cultural e sócio-político para que fatores externos não obstaculizem a "autêntica vida familiar, determinando discriminações, pobreza, exclusões e violência". Não por acaso, o tema escolhido pelo papa para o próximo sínodo ordinário, de 4 a 25 de Outubro de 2015, é "a vocação e a missão da família na Igreja no mundo contemporâneo". O tema foi anunciado nesta segunda-feira pelo cardeal Lorenzo Baldisseri, secretário geral do sínodo, na abertura dos trabalhos e em presença do papa Francisco.